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Presidente do Peru fracassa em tentativa de golpe e acaba destituído e preso

País atinge ápice de crise constante que marcou curto mandato de populista; vice Dina Boluarte assume

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Buenos Aires

A crise política no Peru, que há anos se desenhava insolúvel, chegou a um ápice nesta quarta-feira (7), surpreendente mesmo para um país que se habituou à instabilidade. Em questão de pouco mais de quatro horas, o presidente Pedro Castillo fracassou em uma tentativa de golpe depois de mandar dissolver o Parlamento, antecipar eleições e decretar um estado de exceção, tendo por fim sua destituição aprovada pelo Congresso.

Na prática, o Legislativo ignorou os decretos do político populista e aprovou uma moção de vacância, convocando a vice, Dina Boluarte, para tomar posse como presidente —a sétima pessoa no posto em pouco mais de seis anos. A moção, uma espécie de impeachment, foi aprovada com 101 votos a favor, apenas 6 contrários e 10 abstenções —eram necessários 87 votos para a aprovação.

O movimento pôs fim a 16 meses de uma tumultuada gestão, marcada substancialmente por atritos constantes entre Legislativo e Executivo e pelo desgaste de um presidente desacreditado pela classe política e pela população. Castillo, que precisou formar cinco gabinetes e enfrentar três pedidos de destituição e seis investigações do Ministério Público, deixa o posto aprovado por menos de 30% dos peruanos.

O agora ex-presidente Pedro Castillo conversa com procuradores na prefeitura de Lima, após ser detido - Divulgação Polícia Nacional do Peru - 7.dez.22

A Polícia Nacional do Peru, equivalente à Polícia Federal, chamando Castillo de ex-presidente, noticiou por fim sua detenção. Ele foi acusado dos crimes de rebelião, regulamentado no artigo 346 do Código Penal, e conspiração, por violar a ordem constitucional. Até a última atualização deste texto, ele seguia na Prefeitura de Lima, com as diligências tendo sido conduzidas pela procuradora-geral do país, Paticia Benavides.

Segundo a imprensa local, o político chegou a tentar fugir com familiares, mas acabou interceptado por policiais. O chanceler do México, Marcelo Ebrard, disse que não poderia comentar especulações de um possível pedido de asilo político do mandatário destituído e que não havia falado com ele.

A dissolução do Congresso é um instrumento válido no sistema peruano, desde que o Parlamento tenha rejeitado pelo menos dois votos de confiança ao governo. O primeiro deles foi posto em pauta pelo então premiê Aníbal Torres no início de novembro, mas a oposição se recusou a votá-lo, alegando que o pedido "não poderia ser atendido nos termos estabelecidos".

Se o primeiro voto de confiança fosse rejeitado, todo o gabinete de Castillo seria forçado a renunciar, mas o governo poderia convocar uma segunda votação. Torres assim o fez, ignorando a recusa dos opositores —na prática, dobrando a aposta contra o Congresso.

Ao convocar o segundo voto de confiança mesmo sem que o primeiro tivesse sido votado, o então premiê chegou a dizer que, se a oposição novamente se recusasse a votá-lo, entenderia isso como uma segunda rejeição formal. Na prático, isso poderia ser interpretado como o gatilho para a dissolução do Parlamento.

A oposição manteve a recusa, e Torres anunciou sua renúncia dias depois, sem uma solução para a disputa entre o Legislativo e o Executivo.

Ao ordenar a dissolução, Castillo também tentou se antecipar à sessão em que o Parlamento analisaria seu terceiro processo de destituição, mas fracassou.

A imprensa peruana e os deputados de oposição, que são maioria no Congresso, chamaram o movimento de Castillo de golpe de Estado já nas primeiras horas após a tentativa. Sua então vice, Dina Boluarte, adotou a mesma retórica, e vários ministros apresentaram sua renúncia momentos depois do anúncio, incluindo o chanceler César Landa, Alejandro Salas (Trabalho) e Kurt Burneo (Economia).

O comandante do Exército, general Walter Córdova, fez o mesmo, e o comando militar emitiu uma nota dizendo que "qualquer ato contrário à ordem constitucional estabelecida constitui uma infração à Constituição e não será acatado pelas Forças Armadas e pela Polícia Nacional do Peru". A onda, que incluiu repúdio de diplomatas como a embaixadora dos EUA no Peru, deixou claro o tiro no pé.

Em seu pronunciamento, no fim da manhã, Castillo tinha determinado "dissolver temporariamente o Congresso da República, instaurar um governo de emergência excepcional e convocar no mais breve prazo um novo Congresso com poder constituinte, para elaborar uma nova Constituição em um prazo de até nove meses".

Ele decretou ainda "toque de recolher em todo o país a partir das 22h desta quarta até as 4h do dia seguinte, e a reorganização do sistema de justiça —o Poder Judiciário, o Ministério Público, a Junta Nacional de Justiça e o Tribunal Constitucional". Com sua destituição, nada disso entrou em vigor.

Segundo Castillo, suas ações visavam restabelecer o Estado de Direito e a democracia no Peru. Considerada autoritária, a dissolução do Parlamento de fato foi posta em prática por alguns presidentes, como o ditador Alberto Fujimori, mas com muita crítica pelos que o sucederam.

A última vez havia sido em 2019, sob Martín Vizcarra, depois de os congressistas rejeitarem dois votos de confiança à gestão. No ano seguinte, porém, a nova configuração do Legislativo conseguiu removê-lo em meio a acusações de corrupção, coroando a convulsão política crônica que se manteria até aqui.

A filha de Fujimori, Keiko, foi a principal adversária eleitoral do agora ex-presidente. Investigada por corrupção, ela chegou a ser presa e, após a derrota para o atual presidente com uma diferença de cerca de 50 mil votos, fez denúncias de fraudes nas eleições, nunca comprovadas. "Pedro Castillo desferiu um golpe desesperado porque sabia que lhe restavam apenas algumas horas no poder", escreveu a opositora no Twitter. Horas mais tarde, ela anunciou apoio de sua sigla à nova presidente.

A chamada moção de vacância havia sido protocolada no último dia 29 por um grupo liderado pelo deputado Edward Málaga, acusando o presidente de incapacidade moral de governar. Na véspera, outro congressista já tinha apresentado uma moção de suspensão, que afastaria Castillo por 12 meses para que se julguem ações que correm contra ele na Justiça.

O mecanismo de vacância é uma espécie de impeachment, ainda que seja uma figura jurídica distinta. Nas duas moções anteriores, em dezembro do ano passado e março deste ano, a oposição falhou ao mobilizar apoios, mantendo o populista no cargo.

Mergulhados em crise, Executivo e Legislativo vinham se acusando de tramar um golpe de Estado, para dissolver o Congresso ou derrubar o presidente, a depender da visão. O líder do partido Perú Libre, Wladimir Cerrón, pelo qual Castillo se elegeu mas com quem manteve relação conflituosa, disse que o presidente se precipitou. "Não havia votos suficientes para a vacância", disse.

No último dia 25, o presidente havia anunciado uma renovação de seu gabinete, a quinta em 16 meses de mandato —processo obrigatório após o pedido de demissão de Torres. A ex-deputada Betssy Chávez foi nomeada para o posto, mas tanto ela quanto os novos ministros teriam que obter o voto de confiança do Parlamento, em meio ao clima de confronto —Betssy também apresentou sua renúncia nesta quarta, antes da votação da destituição.

O político respondia ainda a duas acusações constitucionais no Congresso. A primeira por traição, apoiada na ideia de convocar um plebiscito para perguntar à população se estaria de acordo com a concessão de um acesso ao mar para a Bolívia. A segunda alegava que ele liderava uma organização criminosa que buscava obter propinas em troca de contratos de obras públicas —denúncia que, de resto, é foco de uma das seis investigações tocadas pelo Ministério Público.

Desde o início da gestão, em meados de 2021, Castillo tinha dificuldades para governar e formar alianças no Congresso —às quais neste ano se somaram protestos nas ruas. Segundo o Instituto de Estudos Peruanos, ele deixa o governo com 28% de popularidade. A mesma pesquisa, porém, aponta que mais de 80% da população está insatisfeita com o Congresso.

Nesta quarta, cidades como Lima registraram confrontos pontuais em manifestações organizadas principalmente por apoiadores de Castillo.

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