Propaganda russa na TV cria realidade paralela ao retratar Moscou vencedora na Guerra da Ucrânia

Narrativa tem ajudado presidente Vladimir Putin a conservar o apoio doméstico

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Paul Mozur Adam Satariano Aaron Krolik
The New York Times

Enquanto tanques russos atolavam na lama nos arredores de Kiev, nos primeiros meses deste ano, e as consequências econômicas da guerra com a Ucrânia começavam a ser sentidas, um setor do governo da Rússia estava operando com precisão: a propaganda política na televisão.

Tecendo uma contranarrativa para dezenas de milhões de espectadores, propagandistas russos pinçaram clipes dos canais de jornalismo a cabo americanos, das redes sociais de direita e das autoridades chinesas. Identificaram alegações de que o embargo ocidental ao petróleo russo acabaria prejudicando o próprio Ocidente, que os Estados Unidos estariam escondendo laboratórios secretos de armas biológicas na Ucrânia e que a China seria aliada leal da Rússia contra um Ocidente fragmentado.

Tanque de guerra russo destruído na região de Kharkiv, na Ucrânia
Tanque de guerra russo destruído na região de Kharkiv, na Ucrânia - Serguei Bobok - 15.dez.22/AFP

Dia após dia, jornalistas da imprensa estatal foram afiando esses temas em emails. Em alguns casos, colocavam no ar vídeos do campo de batalha e outras informações recebidas da agência sucessora da KGB. Divulgavam trechos e imagens, com tradução, de seus comentaristas favoritos, como o apresentador da Fox News Tucker Carlson, cujos comentários sobre a guerra foram mostrados a milhões de russos.

"Não deixe de dar o que Tucker disse", escreveu um produtor de notícias russo a um colega de trabalho. O email fazia referência a um vídeo em que Carlson descreveu o poder da parceria entre China e Rússia que emergiu sob o presidente Joe Biden –e como as medidas econômicas dos EUA contra a Rússia poderiam enfraquecer o status do dólar como moeda de reserva mundial.

A troca de mensagens foi uma entre milhares de emails armazenados num banco de dados vazado da maior empresa de mídia estatal russa, a VGTRK (Empresa Estatal Panrussa de Televisão e Rádio). Os dados foram disponibilizados publicamente pela DdoSecrets, ONG que divulga documentos hackeados.

O New York Times criou um motor de buscas para identificar materiais entre os 750 gigabytes de arquivos relacionados à escalada que antecedeu a guerra e à fase inicial do conflito, entre janeiro e março de 2022. O jornal verificou os documentos, confirmando os endereços de email e a identidade das pessoas. Em muitos casos as questões discutidas acabaram levando à veiculação de conteúdos no ar.

Os emails oferecem um vislumbre raro do funcionamento de uma máquina de propaganda que talvez seja o maior sucesso da Rússia na guerra. Ao mesmo tempo em que o país enfrenta derrotas no campo de batalha, isolamento e condenação internacional, as emissoras de TV estatais veiculam uma versão em que a Rússia está ganhando, a Ucrânia está em ruínas e as alianças ocidentais estão desgastadas.

Somado à repressão implacável à dissensão, o aparelho de propaganda tem ajudado o presidente russo, Vladimir Putin, a conservar o apoio doméstico a uma guerra que muitos no Ocidente esperavam que o deixasse mais enfraquecido à medida que ela se prolongasse.

Para criar essa narrativa, produtores da companhia de mídia estatal escolheram a dedo conteúdos de veículos de imprensa ocidentais conservadores, além de contas de mídia social obscuras no Telegram e no YouTube, segundo os arquivos. Agências de segurança russa como o Serviço Federal de Segurança (FSB), sucessor da KGB, alimentaram a mídia russa com outras informações.

Em outros casos, profissionais da VGTRK compartilharam clipes, às vezes de veículos americanos pouco conhecidos, que pareciam indicar que a oposição à guerra estaria crescendo no Ocidente ou que as sanções estariam tendo repercussões negativas para os Estados Unidos.

Outros materiais mostraram uma organização que procurava enfrentar o isolamento crescente da Rússia. Profissionais da VGTRK acompanharam como suas transmissões eram recebidas no exterior e falaram de como reagir quando seus canais eram bloqueados em países europeus vizinhos.

Os registros mostram que a China foi usada para reforçar a narrativa russa, com produtores buscando pautas na mídia chinesa. Noutro caso, discutiram a possibilidade de obter favores de um alto funcionário da propaganda política chinesa. A VGTRK e a Fox News não responderam a pedidos de comentários.

A VGTRK tem cerca de 3.500 funcionários e opera alguns dos canais de maior audiência na Rússia, incluindo o Rússia 1 e o Rússia 24, além de uma operação online forte. Com redes nacionais e regionais, a emissora alcança quase a população russa inteira, e seu domínio tem crescido com as restrições impostas pelo governo às redes sociais e à mídia noticiosa independente. Analistas estimam que a empresa recebe cerca de US$ 500 milhões (R$ 2,65 bilhões) por ano do governo russo.

Dois terços dos russos têm na televisão sua principal fonte de notícias, segundo pesquisa recente. E a influência da VGTRK se estende para outros veículos de mídia.

Todos os dias o Kremlin redige uma lista de tópicos a ser cobertos pelas emissoras. Conhecido como "temnik", esse documento é entregue a líderes seniores da VGTRK e outras organizações, delineando temas que o Kremlin quer que sejam tratados, sob ótica positiva ou negativa.

O controle rígido que o Kremlin exerce sobre a mídia aumentou desde a invasão da Ucrânia, mas a confiança das pessoas naquilo ao qual assistem diminui à medida que a guerra se prolonga e que fica mais difícil esconder sua realidade, disse Vera Tolz, professora da Universidade de Manchester que já estudou a mídia russa para o Parlamento britânico e a União Europeia. "Há fendas que aparecem".

Os EUA foram um alvo frequente. Todos os dias circulavam emails com listas de vídeos noticiosos e publicações virais que serviram de pano de fundo para um quadro cada vez mais sombrio de Washington.

À medida que a Rússia foi se isolando, a importância da China foi crescendo. Repórteres da VGTRK reescreveram reportagens da mídia estatal chinesa, transmitindo a imagem de um país poderoso que estava ao lado de Moscou e cuja população estaria dando apoio a uma guerra justa na Ucrânia.

Um email que resultou numa reportagem identificou um slogan que estaria circulando na internet chinesa: "Compre um doce russo e você pode convertê-lo numa bala contra o nazismo".

Relatórios acompanharam a cobertura feita pela mídia internacional de um importante apresentador da VGTRK, Dmitri Kiseliov, observando quando suas falas eram reproduzidas por jornais globais e classificando cada instância como positiva, negativa ou neutra.

Kiseliov é conhecido por declarações incendiárias –em maio, ele ameaçou o Reino Unido com a aniquilação nuclear–, e suas menções negativas na imprensa aumentaram em 2022, segundo os relatórios. Veículos noticiosos na Alemanha, na Nigéria e no Canadá fizeram menções críticas a ele.

Uma delas –marcada com vermelho como sendo negativa–, da revista alemã Stern, descreveu o estado da televisão russa sob "propagandistas" como Kiseliov: "Um misto tóxico de mentiras, ódio e absurdos".

Emails mostraram vínculos estreitos entre a mídia estatal e o aparato de segurança russo, que forneceu informações colocadas no ar prontamente, pintando um retrato róseo de uma guerra que na realidade estava deteriorando. Em 24 de fevereiro, o dia da invasão, o FSB enviou emails a veículos de mídia estatal chamando-os de "colegas" e alegando que soldados ucranianos estavam abandonando seus postos.

Outra mensagem destacou um suposto ataque da Ucrânia a um navio cargueiro civil.

Em março, o FSB enviou dossiês sobre dois oficiais ucranianos mortos em combate, fazendo alegações impossíveis de verificar de que eles teriam matado civis. No email, o serviço de segurança orientou que a informação não devia ser atribuída ao FSB. A ordem foi obedecida na emissão posterior.

A mídia estatal seguiu as orientações do FSB e do Ministério da Defesa sobre como fazer a cobertura de fatos que atraíram indignação, segundo os documentos. Após o bombardeio em março de um teatro em Mariupol onde civis estariam abrigados, a liderança militar enviou um email à VGTRK e outros veículos estatais com "Importante!" na linha de assunto. O email continha um vídeo de uma mulher dizendo que membros de um grupo nacionalista ucraniano, não os militares russos, haviam explodido o teatro.

"Favor usar o material em reportagens", dizia o email.

Tradução de Clara Allain

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