Protagonismo climático é caminho para o Brasil retomar relevância, diz professor

Antonio Carlos Lessa defende que novo governo estruture política externa a partir da diplomacia ambiental

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

São Paulo | Interesse Nacional

O governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) vai ter algumas oportunidades importantes para reconquistar um lugar de destaque para o Brasil na política internacional.

Após quatro anos de Jair Bolsonaro (PL), período em que muitos parceiros no exterior colocaram um "pé no freio" nas relações com o país, o contexto global é desafiador, mas pode permitir que o Brasil recupere uma posição de prestígio. A principal delas, segundo o professor de relações internacionais Antonio Carlos Lessa, é a diplomacia ambiental.

"Se o Brasil estruturar a política externa a partir do protagonismo na agenda ambiental, temos um bom caminho para começar. Não será difícil construir uma imagem crível de novo", disse Lessa à Interesse Nacional.

O presidente eleito Lula discursa em encontro com representantes brasileiros na COP27, no Egito - Joseph Eid - 17.nov.22/AFP

Professor da Universidade de Brasília, atualmente em pesquisa nos EUA, na Universidade de Illinois em Urbana-Champaign, ele alega que o atual presidente fez o trabalho de um "idiota útil" na política externa.

"Algumas agendas que são particularmente custosas, que tinham custos efetivos altos, foram trabalhadas de modo tão atrapalhado que, no final das contas, diminui o custo de operação para o novo governo", disse, citando como exemplo a candidatura do país à OCDE.

A política externa do governo Bolsonaro foi muito criticada ao longo de quatro anos. Que impactos esse rompimento com as tradições do Itamaraty trazido por ele pode deixar na diplomacia brasileira? É preciso pensar esses impactos em camadas diferentes. Há uma superficial, em que o prejuízo que ele causa também é mais superficial. É como um risco em uma mesa bem polida, em que se faz um tratamento e se recupera sem dificuldade. Não é uma cicatriz profunda. Vimos isso, por exemplo, nessa capacidade quase imediata após a eleição de termos uma adesão maciça de boa parte da comunidade internacional saudando a vitória de Lula.

Nessa dimensão, o retorno do Brasil a posições interessantes da cena internacional não vai ser difícil. São questões que podem ser facilmente retomadas; por mais que não haja espaços vagos na política internacional, talvez o Brasil tenha tradicionalmente atributos que facilitem esse reposicionamento.

Na dimensão dos estragos mais permanentes externos, um importante é aquela imagem tradicional do Brasil como um parceiro crível. O Brasil de Bolsonaro reverteu tão rapidamente compromissos importantes nos quais o país aparecia como fiador relevante, e isso foi tão fácil de ser feito numa mudança de governo, que a grande questão é que ninguém garante que isso não acontecerá de novo, em uma outra alternância violenta da forma que nós tivemos com Bolsonaro.

Isso foi tão facilmente desmantelado que deixa uma marca importante, criando uma desconfiança.

Houve algum avanço relevante nesse período? Desde o primeiro momento, Bolsonaro fez o trabalho de um idiota útil. Algumas agendas que são particularmente custosas foram trabalhadas de modo tão atrapalhado que, no final das contas, diminui o custo de operação para o novo governo.

Por exemplo, tínhamos chegado a um impasse no arranjo regional, especialmente em torno da relevância e funcionamento da Unasul. Ao mesmo tempo, há a estagnação do Mercosul, da dimensão sub-regional. Nesse contexto, os desvarios de Bolsonaro, a desarticulação da Unasul, fazem com que o Brasil tenha que pensar num arranjo diferente, que parta do consenso entre vizinhos para dar efetividade a ele.

Bolsonaro prestou um serviço por conta dos custos efetivos na candidatura do Brasil à OCDE e na preparação para a entrada no grupo. Esse é um ponto a que historicamente a esquerda resistia devido aos controles e compromissos impostos pela OCDE à gestão macroeconômica, gestão de políticas públicas. Esse é um caso notório da política externa em que Bolsonaro faz um trabalho sujo, que pode ser útil. Não há dúvida de que a adesão à OCDE fará bem ao Brasil, do ponto de vista da captação de investimentos na captação de recursos, da transparência, combate à corrupção e da gestão de políticas públicas.

De forma semelhante, a aprovação rápida do acordo do Mercosul com a União Europeia, ainda que os avanços mais concretos tenham se dado no governo [Michel] Temer [MDB]. Mas a conclusão do acordo é um desses trabalhos que Lula teria um custo elevado para processar. Aí há algo positivo, que inclusive oferece uma ponte para ele construir e reconstruir a agenda internacional.

O sr. diz isso, mas antes mencionou uma possível perda de credibilidade do Brasil. O fato de Lula voltar ao poder com um discurso e ações que encaminham a tentativa de controlar melhor a posição internacional do Brasil pode conseguir avançar esses projetos? É verdade que houve uma mudança e que ilegalidades foram empoderadas pelo atual governo, mas o país tem uma credencial facilmente recuperável. E a agenda de política externa vai se estruturar em torno disso, porque realmente a leitura que se faz é a da urgência da agenda ambiental, a ocorrência de emergências climáticas dramáticas. E se o Brasil consegue estruturar a política externa a partir do protagonismo na agenda ambiental, temos um bom caminho para começar. Não será difícil construir uma imagem crível de novo. O protagonismo na agenda climática é a única possibilidade de o Brasil adquirir rapidamente relevância internacional.

Sua pesquisa nos EUA trata da relação do país com o Brasil. Essa relação mudou radicalmente nos últimos anos, primeiro com um alinhamento total de Bolsonaro a Trump, depois com o distanciamento de Biden. Como avalia essa situação nesse contexto da volta de Lula ao poder? O comando mais fácil de ser reativado é o do pragmatismo, que historicamente informa a gestão das relações bilaterais, agora temperado por circunstâncias históricas diferentes. O retorno de um comando pragmático é extremamente importante, inclusive como chave para a gestão de outras questões que interessam ao Brasil e aos EUA, como a estabilidade da América Latina e a questão da Venezuela.

Um aspecto extremamente importante é que, nos governos de Lula, a China era uma potência emergente, e agora é uma superpotência. E a rivalidade entre China e EUA, especialmente na região, vai ser muito importante. Temos a oportunidade de testar uma gestão de política externa racional, reinstalando o comando pragmático no tratamento das relações com Washington, e avaliar os efeitos dessa rivalidade de um modo pragmático também, para que o Brasil ganhe com isso. Pensar com criatividade o que é possível extrair de ganhos concretos com essa crescente rivalidade que se instalou na América Latina.

Lula se dá muito bem e tem essa perspectiva de um recobro das relações com a China, mas também tem essa perspectiva de recobrar as relações com os EUA. Vamos ter ali o melhor dos mundos para negociar uma posição de equilíbrio que leve ao crescimento do perfil internacional do Brasil.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.