Sociedade é quem deve propor regulação para redes sociais, diz advogado britânico

Jamie Susskind defende regras para plataformas ante ameaças de big techs à liberdade de expressão

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São Paulo

A quem teme que novas regulações para a internet se mostrem, na prática, uma espécie de censura, o advogado britânico Jamie Susskind faz um alerta.

"A liberdade de expressão já está sob ameaça, porque está nas mãos de empresas privadas que não precisam respeitar leis na hora de decidir que conteúdo será visto e quem será autorizado a falar", diz à Folha o autor do best-seller "Future Politics: Living Together in a World Transformed by Tech" (a política do futuro: vivendo juntos em um mundo transformado pela tecnologia).

Em "The Digital Republic: On Freedom and Democracy in the 21st Century" (a república digital: sobre liberdade e democracia no século 21), novo livro lançado nos EUA e no Reino Unido, Susskind propõe que a sociedade, de forma democrática e em conjunto com o governo e as companhias, estabeleça regras de moderação e funcionamento para as plataformas —hoje, segundo ele, as redes sociais decidem, implementam e fiscalizam normas unilateralmente.

Manifestante em Londres ao lado de cartaz que mostra Mark Zuckerberg, da Meta, surfando em dinheiro e com a bandeira 'sei que ferimos crianças, mas não me importo' - Tolga Akmen - 25.out.21/AFP

O autor defende ainda que as big techs respondam a uma agência regulatória e que executivos tenham de cumprir códigos de conduta.

O sr. afirma que as plataformas de internet não deveriam ser as responsáveis pelas decisões sobre que tipo de conteúdo e discurso é ou não permitido online ou o que é um algoritmo aceitável. Em seu livro, diz que a regulação deveria determinar isso, mas críticos apontam para o perigo de o Estado se tornar um Grande Irmão censor. É possível regular as redes sem sufocar a liberdade de expressão? A liberdade de expressão já está sob ameaça, porque está nas mãos de empresas privadas que não precisam respeitar leis na hora de decidir que conteúdo será visto, quem será autorizado a falar, o que pode ser dito online, o que será promovido e silenciado.

A pergunta não é "devemos ter regras que restringem a liberdade de expressão?", porque já temos isso. A questão é quem deveria escrever essas regras —e isso não deveria ser decidido só por empresas nem só pelo governo. Precisamos de um processo democrático que debata parâmetros básicos de funcionamento das plataformas. A sociedade deveria poder determinar, por meios políticos normais, seus objetivos em relação às plataformas, e então elas os implementariam da maneira que achassem mais adequada.

As empresas não precisariam provar que tomaram decisões corretas em relação a moderação de conteúdo, mas que elas foram compatíveis com as regras estabelecidas pela sociedade. É muito diferente de ter regras decididas, implementadas e fiscalizadas unilateralmente pelas plataformas.

Mas sei que o sistema que proponho é mais adequado para alguns tipos de países. Por exemplo, no Reino Unido há uma regulação de telecomunicações madura, e tenho alto grau de confiança que uma regulação pode ser implementada sem o risco de o governo atropelar liberdades individuais para limitar o discurso de adversários políticos. Mas não teria tanta confiança em um país com histórico de autoritarismo ou uma democracia mais instável, como a Índia.

Parte do conteúdo online nocivo não é necessariamente ilegal. Como conciliar liberdade de expressão e um ambiente que não seja tóxico? Sua pergunta parte do pressuposto de que categorias de "discurso ilegal" são universais e eternas, mas não acho que seja o caso. Sociedades decidem os limites para o discurso legal com base nas próprias normas, costumes e crenças —e no que percebem como ameaça. Há 30 anos, conteúdo glorificando anorexia ou automutilação era secundário, seria difícil para um adolescente achá-lo. Hoje, o contexto é outro, e em muitas plataformas há um microdirecionamento algorítmico desse tipo de conteúdo para adolescentes vulneráveis.

O ponto não é o que fazer com conteúdo legal, mas nocivo. A questão é: devemos repensar o que é legal? A discussão não deveria ser sobre tornar determinados conteúdos ilegais e removê-los, mas determinar que certos discursos não deveriam ser promovidos e amplificados nem direcionados para certos grupos. É uma nova categoria.

Deveria haver regulação e fiscalização de profissionais de tecnologia, como ocorre com médicos e advogados? Com certeza. Não é estranho pensar que o farmacêutico do seu bairro está sujeito a mais regras sobre a conduta profissional do que pessoas que gerem plataformas que podem afetar o processo democrático de centenas de milhões de pessoas? É um anacronismo.

Médicos precisam manter certos padrões de integridade e dignidade, do mesmo jeito que advogados e banqueiros. Não nos restringimos a torcer para que banqueiros não percam nosso dinheiro, temos leis para isso e punimos quem não as cumpre. Adotamos leis e regulação sempre que há um desequilíbrio sistemático de poder. Não entendo por que pessoas que detêm e controlam uma tecnologia muito poderosa não deveriam ter deveres em relação aos afetados por ela.

É certo que uma empresa decida sozinha se uma pessoa como Donald Trump, com mais de 80 milhões de seguidores, deve ser banida da plataforma? É inevitável que as empresas possam tomar decisões sobre o que acontece nas plataformas, e eu não gostaria de ver nenhum governo se intrometendo em decisões sobre determinados usuários. Mas o controle das plataformas deve ser, de alguma maneira, constitucionalizado, para que não seja usado de forma arbitrária e aleatória. No caso do Twitter, não acho que deveria ser simplesmente uma escolha de Elon Musk permitir que Trump volte. Deveria haver regras consistentes e transparentes para isso.

Quais seriam regras obrigatórias em relação aos algoritmos? Diferentes países terão ideias diferentes sobre isso. Os princípios que norteariam a regulação na França seriam distintos dos aplicados nos EUA, ainda que os dois países tenham Estado de Direito e uma tradição de defesa da liberdade de expressão. Dizer que alguma coisa é certa para todos os países causa problemas, porque todo mundo aceita, implicitamente, que a concepção dos EUA deveria ser imposta ao resto do mundo.

Tendo dito isso, há princípios básicos que as plataformas deveriam seguir em qualquer país: reduzir a interferência estrangeira nos processos políticos, implementar medidas para diminuir a disseminação de desinformação política, estimular discursos que contribuem para o debate democrático. Em vez de as plataformas sempre estimularem sensacionalismo, indignação e conflito, gostaria que elas tivessem uma engenharia que encorajasse a livre troca de pontos de vista de forma mais produtiva. Deveriam, no mínimo, ter alguma obrigação de tentar fazer com que o ambiente online não se transforme em esgoto.

Toda vez que autoridades regulatórias pedem às plataformas transparência sobre algoritmos ou equipes de moderação, elas dizem se tratar de segredos comerciais. Empresas de tecnologia são diferentes das farmacêuticas, que devem satisfações ao FDA (EUA) e à Anvisa (Brasil), ou do setor financeiro, que responde à SEC e à CVM? As big techs vêm dizendo há anos que são especiais, mas inúmeros setores que lidam com informações confidenciais e dados sensíveis estão sujeitos a regulação. As empresas usam a desculpa da privacidade para tentar evitar regulação. Isso é cinismo, considerando que elas usam nossos dados de todas as maneiras que a lei permitir para ganhar dinheiro.

Muitos acadêmicos dizem que a legislação antitruste tradicional, que usa o preço para determinar se a concentração de mercado prejudica consumidores, não é adequada para lidar com big techs. O sr. concorda? Sim, eu proponho no livro uma abordagem repaginada para a lei antitruste, para que ela não seja só um instrumento frio de investigação econômica. Defendo que a legislação determine a concentração de poder usando uma lente social e política mais ampla. Se uma empresa comprar mais um concorrente, não deveríamos perguntar apenas se a aquisição vai levar a um aumento de preços, mas se, por exemplo, pode prejudicar a diversidade da mídia ou a saúde da democracia —ou se pode representar ameaças sistêmicas a direitos humanos.

O sr. fala sobre a "armadilha do consentimento", o fato de todos clicarem na caixinha de "concordo" sobre uso de dados sem ler termos de uso ou customizar cookies. Como isso protege as empresas em vez dos consumidores? Ninguém lê termos de uso. Quem lê tudo não entende quase nada, porque está em juridiquês. Mas até para os que entendem os termos não dizem nada. Vamos usar seus dados, compartilhar com terceiros. O que quer dizer isso? Em vez de reequilibrar a relação entre plataformas e indivíduos, a armadilha do consentimento consolida o poder das redes.

Nós precisamos de um mecanismo jurídico que dê aos indivíduos mais controle sobre suas vidas, não menos. Essa ideia de consentimento também não faz sentido numa era de inteligência artificial. Como você pode consentir que sejam feitas inferências sobre você a partir de dados sem saber quais serão elas, já que os dados só revelam coisas sobre você quanto estão juntos com uma quantidade gigantesca de dados de outras pessoas? O consentimento é uma ideia nobre, mas deixou de ser apropriado para a mediação entre poderosos e menos poderosos.

O sr. sugere que as plataformas maiores deveriam ser beneficiadas pela imunidade conferida pela seção 230 da Lei de Decência nas Comunicações dos EUA ou pelo Marco Civil da internet no Brasil apenas se cumprissem alguns requisitos. Como isso funcionaria? Não é nada prático esperar que reguladores se envolvam nos detalhes, em decisões individuais. Em vez disso, acho que as plataformas maiores deveriam implementar sistemas adequados para cumprir certas regras decididas democraticamente. É inevitável que algumas coisas deem errado de vez em quando, mas as empresas têm de mostrar que possuem um sistema para lidar com isso para ter direito à imunidade.

Jamie Susskind autor de livros como "The Digital Republic: On Freedom and Democracy in the 21st Century" e "Future Politics: Living Together in a World Transformed by Tech
O advogado e autor Jamie Susskind - Candice McKenzie - 19.fev.2019/Divulgação Institute for Government

Raio-x | Jamie Susskind, 33

Britânico, formado em história e ciência política em Oxford, é advogado, palestrante e autor. Seus principais livros são "Future Politics: Living Together in a World Transformed by Tech" (2019) e o recém-lançado "The Digital Republic: On Freedom and Democracy in the 21st Century".

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