Fernández cita 'loucura em Brasília' ao defender democracia em abertura da Cúpula da Celac

Encontro de líderes na Argentina reúne representantes de toda a região e volta a contar com o Brasil após recuo de Bolsonaro

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Buenos Aires

Numa Buenos Aires cheia de bloqueios no trânsito e muito policiamento, o líder da Argentina, Alberto Fernández, abriu nesta terça (24) a sétima edição da Cúpula da Celac (Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos) —embora a tenha chamado de modo equivocado de Cúpula das Américas.

Em sua fala inicial, citou os ataques em Brasília como exemplo dos riscos impostos à democracia na região. "Vimos como setores de extrema direita estão ameaçando nossos povos. Não podemos permitir que essa direita recalcitrante e fascista coloque em risco a institucionalidade", afirmou Fernández.

Os presidentes do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, e da Argentina, Alberto Fernández, durante cerimônia de abertura da Cúpula da Celac
Os presidentes do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, e da Argentina, Alberto Fernández, durante cerimônia de abertura da Cúpula da Celac - Luis Robayo/AFP

"Vimos isso dias atrás, quando a loucura invadiu as ruas de Brasília, pouco tempo depois da posse do presidente Lula", prosseguiu o argentino em referência aos atos golpistas nas sedes dos Três Poderes. Ele também inclui na lista o atentado sofrido por sua vice, Cristina Kirchner, em setembro último, e o que chamou de golpe na Bolívia, aludindo às crises que culminaram na renúncia de Evo Morales em 2019.

A abertura da cúpula ocorre no dia seguinte ao encontro entre Fernández e Lula, no qual ambos os presidentes renovaram os votos de reaproximação entre Brasil e Argentina e afirmaram ter avançado em projetos como o de uma moeda única para o comércio bilateral e, eventualmente, regional, e na possibilidade de que o Brasil volte a financiar obras de engenharia no país vizinho.

Sob Lula, o Brasil retorna à Celac, fórum inaugurado em 2011, no Chile, e formado por 33 países da América Latina e do Caribe, mas abandonado pelo ex-presidente Jair Bolsonaro (PL).

O petista, em sua fala, agradeceu aos que "se perfilaram ao lado do Brasil e das instituições brasileiras", também se referindo aos atos golpistas do 8 de Janeiro. "É importante ressaltar que somos uma região pacífica, que repudia o extremismo, o terrorismo e a violência política", disse.

Ele defendeu ainda a união dos países-membros da Celac. "Não queremos importar para a região rivalidades e problemas particulares. Ao contrário, queremos ser parte das soluções para os desafios que são de todos. Nada deve nos separar, já que tudo nos aproxima", afirmou, listando o "passado colonial", a "presença intolerável da escravidão" e as "tendências autoritárias" como desafios em comum.

A cúpula já começou marcada por uma controvérsia envolvendo o ditador da Venezuela, Nicolás Maduro. Com um encontro bilateral marcado com Lula, o venezuelano mudou de planos e não viajou à Argentina, enviando à cúpula seu chanceler, Yvan Gil.

Segundo o regime, a ausência de Maduro se deve a um "complô neofascista" internacional. Fontes do governo argentino afirmam que ele temia a possibilidade da emissão de uma ordem de prisão contra ele.

Nos últimos dias, exilados venezuelanos se manifestaram em Buenos Aires contra a presença do líder venezuelano. Nomes da oposição também protestaram: a presidente do partido de direita PRO, Patricia Bullrich, disse que, caso o ditador fosse a Buenos Aires, pediria uma ordem de prisão internacional à Justiça devido às denúncias de abusos de direitos humanos registradas no país caribenho por diversos órgãos de direitos humanos, como a ONU e a ONG Human Rights Watch.

Nesta terça também houve atos contra a presença do líder de Cuba, Miguel Díaz-Canel, e representantes das ditaduras da Venezuela e da Nicarágua. Um grupo com algumas dezenas de pessoas em frente a um hotel em Buenos Aires gritava "Pátria e Vida", um dos lemas dos protestos contrários ao regime cubano.

Acordo entre Uruguai e China não será pauta em Montevidéu, diz Haddad

Buenos Aires foi a parada inicial da primeira viagem internacional de Lula desde que voltou a assumir a Presidência. De lá, ele vai a Montevidéu, onde se reúne com Luis Lacalle Pou nesta quarta.

O ministro da Economia, Fernando Haddad, que acompanha a comitiva presidencial, afirmou que o tratado de livre comércio que o país vizinho tenta negociar com a China não estará em pauta. "No Uruguai, vamos falar de Mercosul, não sobre o acordo com a China", disse ele à Folha. "É uma visita para fortalecer o Mercosul. Acredito que a América do Sul, o destino de sucesso dela, passa pelo bloco econômico. Quanto a isso eu não tenho nenhuma dúvida."

O avanço das conversas entre Montevidéu e Pequim —principal parceiro comercial uruguaio e destino de cerca de 27% de suas exportações— foi alvo de advertências dos demais membros do Mercosul. Eles defendem que o regulamento do bloco determina que acordos do tipo devem ser firmados por todos os sócios e afirmam que medidas legais podem ser adotadas caso o Uruguai desobedeça essa prerrogativa.

A jornalistas depois da plenária na cúpula Lacalle Pou criticou o protecionismo do Mercosul e defendeu acordos de livre comércio com outros países. O líder uruguaio disse que "é possível avançar numa integração regional em vez de olhar para o outro lado do mundo e reclamar" e deu uma indireta a Fernández e Lula, ao afirmar que "não é necessário ser de esquerda para defender a democracia".

Depois, em referência ao comentário do ministro da Economia argentino, Sergio Massa, para quem o Uruguai é um "irmão menor" a quem Brasil e Argentina deveriam "cuidar", Lacalle Pou riu e respondeu "Disneylândia", uma maneira de definir a declaração como infantil.

O líder uruguaio, porém, diz não ver o Mercosul como obstáculo em relação às tentativas de seu governo de negociar pactos comerciais de maneira independente. Além do acordo com a China, ele também apresentou recentemente um pedido de ingresso formal no CPTPP (Acordo Abrangente e Progressivo de Parceria Transpacífica), formado por 11 países da Ásia e da América, entre os quais Chile e Peru.

Um dos principais nomes contrários a essas negociações é Fernandéz. Diferentemente de seu antecessor, Maurício Macri, ele defende um bloco mais fechado —os líderes argentino e uruguaio protagonizaram um debate acalorado sobre o tópico na última cúpula do Mercosul, em julho passado.

O Brasil teve postura ambivalente em relação ao tema durante o governo Bolsonaro. Mas Lula, em seus mandatos anteriores, foi um ferrenho defensor de um Mercosul integrado —posição ecoada pelo chanceler Mauro Vieira em entrevista à Folha, na qual afirmou que um pacto como o que Montevidéu procura firmar com Pequim poderia representar o fim do bloco.

Questionado sobre a compatibilidade do pleito uruguaio em relação às normas do Mercosul, Haddad respondeu que "isso nós veremos amanhã [quarta]". Lacalle Pou, por sua vez, fez uma espécie de indireta ao governo brasileiro em seu discurso na cúpula. "É preciso que nos deixem nos abrir ao mundo", disse.

Julio Bitelli deve ser o novo embaixador do Brasil na Argentina

O Itamaraty anunciou nesta terça que o governo da Argentina concedeu o agrément ao diplomata Julio Glinternick Bitelli para que ele seja o novo embaixador do Brasil em Buenos Aires. A celeridade do processo é um dos reflexos da retomada dos laços entre os dois países sob Lula.

O documento indica concordância do governo anfitrião com a nomeação feita pelo governo Lula. Bitelli é hoje embaixador do Brasil no Marrocos e já chefiou as representações na Tunísia e na Colômbia. Na Argentina, foi responsável pelo setor político de 2003 a 2006 e ministro-conselheiro de 2010 a 2013.

Bitelli também foi chefe de gabinete do Ministério das Relações Exteriores em 2015 e 2016, na gestão de Mauro Vieira, quando o atual titular da pasta era o chanceler do governo de Dilma Rousseff.

A nomeação de Bitelli ainda deve passar por apreciação do Senado. Seu nome, no entanto, frustra as expectativas de que uma mulher fosse nomeada para o posto de Buenos Aires. As mais cotadas eram Eugênia Barthelmess, hoje embaixadora em Singapura e ex-diretora de América do Sul no Itamaraty, e Gisela Padovan, ex-cônsul em Madri. Colocar embaixadoras à frente de representações diplomáticas cruciais era uma das promessas de Vieira para aumentar o número de mulheres em cargos de liderança.

Colaboraram Clara Balbi e Lucas Alonso

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