Sob Lula, Brasil deixa aliança antiaborto patrocinada por países ultraconservadores

Documento que defende conceito de família baseado em casais heterossexuais havia sido endossado por Bolsonaro

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Brasília

O governo recém-empossado do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) anunciou nesta terça-feira (17) que se retirou da chamada Declaração do Consenso de Genebra, espécie de libelo multilateral contra o aborto e em defesa da família baseada em casais heterossexuais.

A justificativa, expressa em nota conjunta das pastas de Relações Exteriores, Saúde, Mulheres e Direitos Humanos e Cidadania, é de que o texto "contém entendimento limitativo dos direitos sexuais e reprodutivos e do conceito de família e pode comprometer a plena implementação da lei nacional sobre a matéria".

O Brasil havia aderido ao documento em outubro de 2020, numa cerimônia na qual o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) foi representado pelos então ministros Ernesto Araújo (Relações Exteriores) e Damares Alves (Mulher, Família e Direitos Humanos), expoentes da chamada ala ideológica da gestão.

Ato contra a juíza Joana Ribeiro Zimmer, do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, em frente ao Ministério Público Federal, em São Paulo; magistrada tentou impedir uma menina de 11 anos de realizar aborto legal após ser estuprada - Bruno Santos - 23.jun.22/Folhapress

A declaração defende que "a família é a unidade natural e fundamental da sociedade", em que a mulher "desempenha um papel crítico" e que "o aborto jamais deve ser usado para fins de planejamento familiar".

Ela não possui força de tratado nem é vinculante, ou seja, países não ficam obrigados a seguir as orientações —ativistas críticos aos termos, porém, sempre os viram como mais um passo para tentar quebrar consensos internacionais já existentes sobre o tema.

Atual ministra das Mulheres, Cida Gonçalves afirmou que a saída do consenso representa "uma mudança radical" no campo das políticas que visam a população feminina. Já Silvio Almeida, dos Direitos Humanos, apontou que a decisão representa uma aproximação do Brasil com entidades que "de fato [...] têm uma tradição na criação de um ambiente político em que o diálogo e o respeito às minorias seja a tônica".

Os EUA, à época presididos por Donald Trump, foram um dos patrocinadores da declaração, em 2020. Na posse de Joe Biden, porém, já haviam deixado de referendar o texto e de representar sua liderança. Continuam como signatários regimes absolutistas e nações governadas por líderes ultraconservadores ou onde há um avanço do autoritarismo e da restrição a direitos civis, a exemplo de Qatar, Eswatini, Polônia, Hungria, Omã e Uganda.

Após a saída do Brasil, restam apenas três signatários latino-americanos: Haiti, Guatemala e Paraguai —a última versão oficial do texto é de outubro de 2021. Trata-se de uma consequência da nova "onda rosa" na região após a eleição de vários líderes de esquerda e centro-esquerda na região.

Em agosto passado, Gustavo Petro, presidente da Colômbia então recém-empossado, deixou o acordo assinado por seu antecessor direitista Iván Duque meses antes. O anúncio foi feito em uma carta da chancelaria para o Itamaraty, com recados pouco sutis, ampliando um isolamento do governo Bolsonaro.

Meses antes, a Corte Constitucional do país havia descriminalizado a interrupção voluntária da gravidez até a 24ª semana de gestação —o que, de certa forma, tornou a adesão colombiana ao pacto, posterior à fixação dessa decisão, uma contradição.

A decisão do Brasil sobre o Consenso de Genebra é anunciada um dia após o Ministério da Saúde revogar seis portarias da gestão anterior. Uma delas previa a necessidade de que o médico avisasse a polícia em caso de aborto por estupro.

Ainda nesta terça, o governo federal também comunicou à Cepal (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe) a intenção de se associar a duas outras declarações que tratam da questão de gênero.

São elas o Compromisso de Santiago e a Declaração do Panamá, que analisam o tema sob a perspectiva dos impactos da Covid e da desigualdade social, respectivamente —ao contrário da Declaração do Consenso de Genebra, elas estariam "plenamente alinhadas com a legislação brasileira".

Segundo a gestão petista, a associação aumentaria o potencial para cooperação multilateral sobre direitos das mulheres nos âmbitos regionais e do hemisfério.


Signatários da Declaração do Consenso de Genebra*

  1. Arábia Saudita
  2. Bahrein
  3. Belarus
  4. Benin
  5. Burkina Fasso
  6. Camarões
  7. Congo
  8. Djibuti
  9. Egito
  10. Emirados Árabes Unidos
  11. Eswatini
  12. Gâmbia
  13. Geórgia
  14. Guatemala
  15. Haiti
  16. Hungria
  17. Indonésia
  18. Iraque
  19. Kuwait
  20. Líbia
  21. Nauru
  22. Níger
  23. Omã
  24. Paquistão
  25. Paraguai
  26. Polônia
  27. Qatar
  28. Quênia
  29. República Democrática do Congo
  30. Rússia
  31. Senegal
  32. Sudão
  33. Sudão do Sul
  34. Uganda
  35. Zâmbia

*Segundo última versão oficial do documento, de 22 de outubro de 2021

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