Uruguai destoa na Celac, ataca Mercosul e diz que defesa da democracia não é só de esquerda

Imbróglio entre líderes da região tem como pano de fundo acordos de livre comércio que Montevidéu almeja selar

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Buenos Aires

Se Brasil e Argentina chegaram à Cúpula da Celac (Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos) em Buenos Aires na tarde desta terça-feira (24) com discursos alinhados sobre a necessidade de combater o avanço da ultradireita, ficou com o Uruguai de Luis Lacalle Pou a tarefa de desafinar o coro dos contentes.

A jornalistas o presidente de centro-direita afirmou que é preciso que nações vizinhas deixem que o país "se abra ao mundo" e disse que essa seria sua principal mensagem ao brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva (PT) —depois de passar pela Argentina, o petista vai ao Uruguai nesta quarta (25).

Lacalle Pou se referia a acordos de livre comércio que Montevidéu negocia com países como China e Nova Zelândia, algo que vem sendo criticado por outros membros do Mercosul. O chanceler brasileiro, Mauro Vieira, afirmou em entrevista à Folha que tirar uma ideia como essa do papel significaria a destruição do bloco.

Luis Lacalle Pou, presidente do Uruguai, durante entrevista coletiva após cúpula da Celac em Buenos Aires - Agustin Marcarian - 24.jan.23/Reuters

O uruguaio criticou o que chama de protecionismo do Mercosul e pediu que líderes da região parem de "reclamar para dentro" e compreendam que é preciso avançar na integração global.

Além de recados ao governo brasileiro, sobraram também indiretas ao governo de Alberto Fernández na Argentina. O centro-direitista disse, por exemplo, que "não é necessário ser de esquerda para defender a democracia", contrariando mensagens ecoadas pelo peronista e também por Lula em Buenos Aires.

Na cúpula, Lacalle Pou ainda afirmou que nem todos na mesa —que incluía o líder da ditadura cubana, Miguel Díaz-Canel— respeitavam os valores democráticos e que era perigoso fazer da Celac um clube ideológico. "Ouvi discursos com os quais concordo totalmente, outros com os quais concordo com a metade e outros com os quais não concordo em quase nada. Mas entendo que nossas nações precisam se vincular", afirmou. "A declaração da Celac fala de respeito à democracia, aos direitos humanos e do cuidado às instituições, mas claramente existem países aqui que não respeitam nem as instituições nem a democracia nem os direitos humanos."

A referência foi ao comunicado final da reunião, que reforçou a necessidade de reforçar a democracia, as instituições e os direitos humanos; também expressou preocupação com o aumento no número de países da região que são vítimas de sanções financeiras.

O regime cubano, bem como o de Venezuela e Nicarágua, que também integram a comunidade e enviaram representantes à cúpula, são reiteradamente acusados de abusos e violações dos direitos humanos, incluindo a perseguição a opositores e dissidentes.

Mais tarde, na conversa com os jornalistas, Lacalle Pou ainda fez referência a um comentário do ministro da Economia argentino, Sergio Massa, de que o Uruguai é um "irmão menor" a quem Brasil e Argentina deveriam "cuidar". O presidente riu e respondeu apenas com a expressão "Disneylândia", uma maneira de definir a declaração como infantil.

O próprio Fernández adotou discurso semelhante ao de seu ministro. Também em entrevista à Folha, afirmou que o Uruguai "deve entender que se deve buscar objetivos como sócio de uma região". E seguiu: "Esse é o papel de países menores, enquanto o dos maiores é atender as assimetrias que existem, tirar os obstáculos para países menores".

Lacalle Pou diz não ver o Mercosul como obstáculo em relação às tentativas de seu governo de negociar pactos comerciais de maneira independente. Além do acordo com a China, ele também apresentou recentemente um pedido de ingresso formal no CPTPP (Acordo Abrangente e Progressivo de Parceria Transpacífica), formado por 11 países da Ásia e da América, entre os quais Chile e Peru.

Um dos principais nomes contrários a essas negociações é Fernandéz. Diferentemente de seu antecessor, Maurício Macri, ele defende um bloco mais fechado —os líderes argentino e uruguaio protagonizaram um debate acalorado sobre o tópico na última cúpula do Mercosul, em julho passado.

O Brasil teve postura ambivalente em relação ao tema durante o governo de Jair Bolsonaro (PL). Mas Lula, em seus mandatos anteriores, foi um ferrenho defensor de um Mercosul integrado, postura que, como demonstraram as declarações de Mauro Vieira, sustenta-se ainda hoje.

Questionado sobre a compatibilidade do pleito uruguaio em relação às normas do Mercosul, o ministro da Fazenda Fernando Haddad (PT), um dos membros da comitiva de Lula em Buenos Aires, respondeu que "isso veremos amanhã" —em referência à ida a Montevidéu, nesta quarta.

Mais tarde, Celso Amorim, assessor especial do presidente, também falou sobre as expectativas para o encontro dos dois líderes. "Nós achamos que o Mercosul deve ser preservado. Dentro da ideia de preservação, está a questão da Tarifa Externa Comum, e isso não é uma exigência do Brasil ou da Argentina, é o artigo 1º do Tratado de Assunção", afirmou.

"Reconhecemos que os países menores precisam de algum apoio, de alguma forma. O Uruguai é uma economia um pouco mais sofisticada, com capacidade na área de serviço. Mas não há por que não comprar produtos industrializados do Uruguai ou estimular que o Uruguai participe da cadeia produtiva."

Às margens da Cúpula da Celac, Lula teve encontros bilaterais com diversos líderes da região, como Díaz-Canel e a primeira-ministra de Barbados, Mia Mottley, política que tem ganhado destaque na região por sua enfática defesa do combate à emergência climática e também pela postura favorável ao adeus dado pela ilha à monarquia britânica.

Segundo Amorim, a conversa com o líder de Havana marcou uma reaproximação com o regime —ele indicou que o Brasil deve voltar a condenar o embargo americano à ilha na ONU, revertendo orientação de Bolsonaro. Com Mottley, falou-se da potencialidade da relação, "entre outras coisas na possibilidade de produção de petróleo pela Petrobras no país".

Na cúpula em si, o anfitrião Fernández renovou com Lula votos de reaproximação entre os países e também fez recorrentes menções à política brasileira em seu discurso de abertura, como quando citou os ataques às sedes dos Três Poderes, no último dia 8, para falar sobre a defesa da democracia. Segundo ele, "a loucura invadiu as ruas de Brasília".

"Vimos como setores de extrema direita estão ameaçando nossos povos. Não podemos permitir que essa direita recalcitrante e fascista coloque em risco a institucionalidade", disse o argentino, um dos principais aliados do petista na vizinhança e que em breve pode se despedir do posto —a Argentina tem eleições este ano, e não está claro se o peronista tentaria um segundo mandato, ante sua popularidade em baixa.

Ele também inclui na lista de ataques o atentado sofrido por sua vice, Cristina Kirchner, em setembro último, e o que chamou de golpe na Bolívia, aludindo às crises que culminaram na renúncia de Evo Morales em 2019.

Lula, em sua fala, agradeceu aos que "se perfilaram ao lado do Brasil e das instituições brasileiras", também se referindo aos atos golpistas do 8 de Janeiro. "É importante ressaltar que somos uma região pacífica, que repudia o extremismo, o terrorismo e a violência política", disse o petista, que também defendeu a união dos países-membros da Celac. "Não queremos importar rivalidades e problemas particulares. Ao contrário, queremos ser parte das soluções para os desafios que são de todos. Nada deve nos separar, já que tudo nos aproxima."

A abertura da cúpula se deu no dia seguinte ao encontro entre Fernández e Lula, no qual ambos afirmaram ter avançado em projetos como o de uma moeda única para o comércio bilateral e, eventualmente, regional, e na possibilidade de que o Brasil volte a financiar obras de engenharia no país vizinho. Sob o petista, o Brasil retornou ao fórum inaugurado em 2011, no Chile, e formado por 33 países da América Latina e do Caribe, mas abandonado por Bolsonaro.

A cúpula foi marcada ainda pela ausência do ditador Nicolás Maduro. Com um encontro bilateral marcado com Lula, o venezuelano mudou de planos e não viajou à Argentina, enviando seu chanceler, Yvan Gil. Segundo o regime, sua ausência se deve a um "complô neofascista" internacional. Fontes do governo argentino afirmam que Maduro temia a possibilidade da emissão de uma ordem de prisão contra ele.

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