Descrição de chapéu internet

Empresa tenta manipular busca do Google e cria fake news para lavar reputação de clientes

Multinacional Eliminalia prestou serviços no Brasil a acusados de corrupção e tráfico de drogas

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

São Paulo | Forbidden Stories

A reportagem abaixo faz parte da série Story Killers, investigação colaborativa sobre grupos de desinformação coordenada pelo consórcio Forbidden Stories, do qual a Folha faz parte. A missão da organização francesa sem fins lucrativos é preservar o trabalho de repórteres assassinados, ameaçados ou presos.

No final de 2020, aconselhado por amigos, Airton Grazzioli decidiu contratar a Eliminalia, multinacional espanhola que prometia apagar o passado online de seus clientes. "Defendemos sua reputação de todas as maneiras e garantimos os resultados", afirmava a empresa num folheto.

Ex-promotor de Fundações do Ministério Público de São Paulo, Grazzioli foi denunciado por lavagem de dinheiro em 2021, após uma investigação de corrupção em 2019. À época da apuração, reportagens com fotos de maços de dinheiro em operação de busca e apreensão na casa dele se espalharam pela internet.

Reportagem falsa sobre ex-promotor Airton Grazzioli, em site ligado à empresa de recuperação de reputação Eliminalia
Reportagem falsa sobre ex-promotor Airton Grazzioli, em site ligado à empresa de recuperação de reputação Eliminalia - Reprodução

Grazzioli pagou € 19,7 mil (R$ 110,1 mil) para a Eliminalia reduzir a visibilidade de textos e fotos sobre a operação. "O trabalho seria para o restabelecimento da verdade e correção dos conteúdos falsos, que afetaram a minha reputação, como profissional que sou e sempre fui reconhecido", disse ele.

A Eliminalia afirma eliminar links, comentários e informações na internet ou em veículos de mídia "graças a gestões e sistemas desenvolvidos" pela empresa e diz só remover "conteúdo indesejado ou errôneo". Na verdade, a empresa usa métodos escusos para apagar o passado digital de clientes investigados ou condenados por crimes como tráfico de drogas, corrupção, tortura e exploração de mulheres.

Para esconder reportagens legítimas que sejam prejudiciais a seus clientes, a empresa tenta manipular o sistema de buscas do Google, criando sites com notícias falsas e usando denúncias falsas de violação de direitos autorais para derrubar links —ainda que nem todas sejam bem-sucedidas—, além de emails de supostas autoridades para ameaçar veículos de imprensa.

Entre 2015 e 2021, centenas de jornalistas e veículos de mídia em inúmeros países, entre os quais o Brasil, tiveram conteúdo removido ou escondido devido a ações da Eliminalia. Quase 50 mil documentos internos da empresa, incluindo emails confidenciais, nomes de clientes, contratos e outros registros jurídicos, vazaram para o consórcio de imprensa Forbidden Stories. Esses documentos revelam o modus operandi da companhia para esconder notícias sobre criminosos e investigados em 54 países.

Por seis meses, a Folha e os outros 30 veículos de mídia que integram o projeto Story Killers investigaram a indústria global da desinformação. Os documentos revelam que a Eliminalia prestou serviços para um médico acusado de trabalhar em um centro de tortura durante a ditadura militar no Chile, um banco investigado por supostamente lavar dinheiro para funcionários corruptos do regime na Venezuela, um brasileiro-libanês apontado como integrante de um esquema de tráfico de pessoas e prostituição, um ex-promotor denunciado por corrupção e um mexicano que teria participado de uma quadrilha internacional de tráfico de cocaína escondida em blocos de granito e latas de abacaxi saindo do porto de Itajaí (SC).

Segundo Grazzioli, um dos clientes da empresa, a Eliminalia prometeu remover ou corrigir conteúdos indicados por ele, mas ele afirma que não sabia que táticas a companhia empregaria para isso.

Uma das estratégias era bombardear o Google com falsas denúncias de violação de direitos autorais para que a plataforma derrubasse os links pedidos pelos clientes. Foram enviadas dezenas de denúncias baseadas na DMCA (Digital Millennium Copyright Act), lei americana criada em 1998 para facilitar a remoção de conteúdo pirateado por sites. A DMCA acabou incentivando a derrubada rápida de links para evitar responsabilização e é explorada por empresas de gerenciamento de reputação como a Eliminalia.

A empresa enviou dezenas de denúncias dizendo que reportagens e fotos sobre a busca e apreensão na casa de Grazzioli haviam sido copiadas ilegalmente, sem pagamento de direitos. As denúncias falsas podem ser localizadas na base de dados Lumen, que armazena essas informações desde 2002.

O Google não derrubou todos os links denunciados. Em um dos pedidos, o denunciante alegava que "o conteúdo do artigo foi copiado do nosso website, começando com as palavras 'Promotoria do crime organizado faz buscas na casa de ex-promotor de Fundações em SP'". Um dos links que foi alvo de denúncia falsa de violação de copyright foi do jornal O Estado de Minas, que republicou, com autorização e crédito, uma reportagem do jornal O Estado de S. Paulo sobre o ex-promotor. O link foi derrubado. À Folha a publicação disse que "não irá se manifestar sobre o assunto até o pleno conhecimento dos fatos".

Já o portal de notícias R7, que também foi alvo de denúncias falsas de violação de copyright, não teve o link da reportagem derrubado. Em nota, a assessoria do veículo disse ter recebido apenas do próprio Grazzioli uma solicitação para remoção de conteúdo, o que foi negado.

Outra estratégia dos funcionários da Eliminalia era intimidar veículos de mídia para que removessem conteúdo prejudicial aos seus clientes. Muitas vezes, enviavam mensagens usando o nome falso Raul Soto e um endereço de e-mail, urgent@abuse-report.eu, fingindo ter ligação com a União Europeia.

Outra tática para apagar o passado online de clientes era tentar "enganar" o mecanismo de busca do Google, para empurrar os links de viés negativo para a segunda ou a terceira página de resultados.

Para isso, a Eliminalia criava inúmeras reportagens falsas citando o nome do cliente em uma série de sites pseudojornalísticos ligados à empresa. Assim, a firma usava a técnica de "backlinking" para manipular o algoritmo do Google, postando em sites legítimos links que direcionavam a sites fakes, o que aumentava o tráfego desses sites e, por tabela, mudava a posição deles no ranking dos resultados das buscas.

No caso de Grazzioli, seu nome aparecia em reportagens fake em sites como Guayaquil202, La Gaceta Eciuatoriana, Envio Telegrafo, Fintech Ecuador. Em uma, era citado como um especialista em inteligência artificial da Organização Mundial da Saúde. Em outra, falava sobre "tecnologias de construção" e, numa terceira, Grazzioli "fala sobre uma estrela que se transforma em um planeta devido a um buraco negro".

A Qurium, organização de segurança digital de jornalistas e ativistas, identificou 3.350 artigos falsos mencionando 48 nomes e empresas associados a casos de corrupção, narcotráfico ou lavagem de dinheiro na Argentina, no Brasil, na Colômbia, no Equador, na República Dominicana, na Itália, em Israel, no México, na África do Sul, na Espanha, na Suíça, no Reino Unido e na Venezuela. A organização localizou ainda 622 sites que a Eliminalia usaria para "lavar" a reputação de seus clientes.

Em email de 2019 obtido pelo Forbidden Stories e seus parceiros, um funcionário da Eliminalia diz a um cliente que a empresa planejava publicar "artigos positivos ou neutros" sobre uma pessoa supostamente com o mesmo nome do contratante. O funcionário afirma esperar que esses artigos fake apareçam no topo dos resultados da busca do nome do cliente. "Trata-se de não conseguir encontrar as coisas. É uma nova definição de censura", disse Tord Lundström, assessor técnico que analisou dados para o consórcio.

Grazzioli afirma que não sabia que a Eliminalia ia usar esse tipo de recurso. "O ajustado e prometido por eles sempre foi a atuação dentro da legalidade. E meu objetivo sempre foi somente a correção de notícias falsas a meu respeito, de acordo com a legislação." O ex-promotor, inclusive, afirma ter sido ludibriado pela empresa, que não teria entregado o prometido. "A correção dos conteúdos falsos não logrou atender ao quanto esperado, pois o meu nome continua na internet com um número muito grande de reportagens com as notícias falsas referidas. A propósito, as notícias falsas foram repercutidas em dezenas de sites."

Outros clientes da Eliminalia também reclamaram dos serviços. Não é possível saber se, na época em que o serviço foi contratado, a companhia conseguiu reduzir a visibilidade das reportagens.

Segundo o Google, a empresa tem maneiras de combater esse tipo de prática. "Embora existam pessoas mal-intencionadas que tentam manipular as classificações dos mecanismos de pesquisa, o Google desenvolve seus sistemas para classificar informações de alta qualidade no topo dos resultados de pesquisa e combater spams e comportamentos maliciosos. Qualquer pessoa que pesquisar os nomes no Google encontrará claramente informações confiáveis sobre suas atividades anteriores nos principais resultados, se essas informações estiverem disponíveis na web aberta", disse um porta-voz da plataforma.

O Google afirmou também que combate ativamente as tentativas de remoções fraudulentas mediante denúncias de violação de direitos autorais. A empresa afirma usar "uma combinação de revisão automatizada e humana para detectar sinais de abuso".

Outro cliente da Eliminalia no Brasil foi o mexicano M.A.V.R. Ele era investigado por suposto envolvimento numa quadrilha de tráfico internacional de drogas. A quadrilha atuava no porto de Itajaí e traficou para a Europa mais de oito toneladas de cocaína em latas de abacaxi em calda, blocos de granito e bobinas de aço. A Folha usa apenas as iniciais do nome pois ele foi absolvido em primeira instância pelo juízo federal.

Segundo Thaís Felix, advogada de M.A.V.R, ele contratou a Eliminalia a partir de um anúncio na internet. A empresa prometia "a realocação [do nome dele] no ranking das buscas, de modo a tornar mais difícil sua localização nas principais posições do mecanismo de pesquisa" diante dos transtornos causados por ter seu nome vinculado a uma operação policial. Ela disse que, para M.A.V.R., a empresa "pareceu ser séria e comprometida com as leis. O serviço contratado era lícito". Ele pagou € 1.815 (cerca de R$ 10 mil).

Outro cliente foi Wissam Mohamad Nasser, brasileiro-libanês preso numa operação contra uma quadrilha de tráfico para fins de exploração de mulheres, acusado de ser cliente do esquema e comprar serviços de menores de idade. Em 2020, ele contratou a Eliminalia para remover ou reduzir a visibilidade de links e comentários em rede social mencionando o suposto envolvimento com a rede de prostituição.

Procurados pela OCCRP, parceiro do consórcio investigativo, Wissam e seus advogados não retornaram.

A Eliminalia não é a única empresa de lavagem de reputação atuando no mercado, mas é uma das mais bem-sucedidas, dizem especialistas. Em 2020 e 2021, a empresa faturou € 2,5 milhões (R$ 14 milhões).

"Há inúmeras empresas de relações públicas, lobby, advocacia e outras que basicamente se dedicam a reposicionar empresas, indivíduos e governos repugnantes e transformá-los em empresários respeitados internacionalmente e filantropos cosmopolitas", disse Tena Prelec, pesquisadora da Universidade Oxford que estuda a indústria de gerenciamento de reputação.

Procurado pelo Forbidden Stories, o fundador da Eliminalia, o espanhol Diego ‘Didac’ Sanchez, enviou uma resposta por meio de seus advogados, Pascal e David Winter. Por email, eles afirmaram que não iriam responder as perguntas enviadas e ameaçaram entrar com uma ação judicial. Em 16 de janeiro, a um mês da publicação das reportagens, a Eliminalia parece ter tentado lavar sua própria reputação. Na porta do escritório em Barcelona onde a empresa está sediada, agora lê-se Idata Protection em vez de Eliminalia.

Registros oficiais da companhia examinados pelo Forbidden Stories mostram que a empresa de fato mudou de nome. Quando dois integrantes do consórcio estiveram no escritório, uma funcionária afirmou: "A empresa se chama Idata Protection, mas nós pertencemos à Eliminalia".

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.