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Hackers de Israel usam fake news e inteligência artificial para manipular eleições

Investigação de consórcio de jornalistas revela que grupo conhecido como Team Jorge opera mais de 40 mil perfis falsos

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Cécile Andrzejewski
Forbidden Stories

A reportagem abaixo faz parte da série Story Killers, uma investigação colaborativa sobre grupos de desinformação coordenada pelo consórcio Forbidden Stories, do qual a Folha também faz parte.

Em 2018, o escândalo da Cambridge Analytica trouxe à tona como a empresa britânica adquiriu os dados pessoais de quase 87 milhões de usuários do Facebook para influenciar eleitores em "escala industrial".

A empresa, que vendeu seus serviços em cerca de 60 países, é acusada de manipular várias eleições; ela contribuiu para vitória de Donald Trump nos EUA em 2016 e para a aprovação do brexit na Inglaterra.

Tal Hanan, identificado como Jorge; Mashi Meidan e Zohar Hanan, também envolvidos no grupo de hackers israelenses
Tal Hanan, identificado como Jorge; Mashi Meidan e Zohar Hanan, também envolvidos no grupo de hackers israelenses - Divulgação

Alguns dos vilões mais temidos desse mundo têm conseguido se esconder, entre os quais misteriosos hackers israelenses. Brittany Kaiser, ex-diretora de desenvolvimento da Cambridge e uma das agora famosas denunciantes no caso, descreveu-os como uma equipe encarregada de "pesquisas de oposição".

Em depoimentos anônimos publicados pela imprensa britânica em 2018, ex-funcionários da empresa descreveram "hackers israelenses" invadindo os escritórios da companhia com pen drives aparentemente carregados de e-mails particulares hackeados de políticos. "As pessoas entraram em pânico. Não queriam ter nada a ver com isso", um ex-funcionário disse ao jornal The Guardian à época.

O escândalo revelou a existência e os métodos desses hackers misteriosos. Mas até agora a imprensa não conseguiu penetrar o anonimato desses "pesquisadores oposicionistas" nem vinculá-los a uma empresa. Quando faz referência a "operações sigilosas" israelenses, Alexander Nix, que comandava a Cambridge Analytica, não cita a identidade da empresa. Em vez disso, cita uma alcunha do chefe dessa entidade ultrassecreta: Jorge, um suposto consultor israelense.

Nesse mercado paralelo de desinformação, empresas –tanto oficiais quanto clandestinas— se tornaram mestres na arte de manipular a realidade e difundir informações enganosas. Dando continuidade ao trabalho de Gauri Lankesh, jornalista indiana assassinada em 2017 que investigou a desinformação e as chamadas "fábricas de mentiras", o projeto Story Killers penetrou uma indústria que emprega todas as armas à sua disposição para manipular a mídia e a opinião pública às expensas da democracia.

No verão de 2022, um cliente potencial, que se fez passar por representante de um líder africano interessado em adiar ou mesmo cancelar uma eleição, pediu a Jorge uma demonstração de seus serviços. Jorge lhe disse que o trabalho custaria cerca de € 6 milhões (cerca de R$ 33,4 milhões).

O que Jorge não sabia era que o homem visto em sua tela não era intermediário e não trabalhava na África. Era, na realidade, um jornalista da Radio France, e pouco depois se somariam a ele colegas do TheMarker e do Haaretz, repórteres que integram o projeto Story Killers.

Entre julho e dezembro de 2022, jornalistas fazendo-se passar por clientes tiveram várias reuniões com Jorge —três online e uma em seu escritório em Israel. O consórcio decidiu que era do interesse público que eles se infiltrassem clandestinamente, a única maneira de ganhar acesso a esse mundo fechado.

Para chegar a Jorge, os jornalistas tiveram que passar por uma série de intermediários, desde antigos funcionários de inteligência até especialistas em comunicações e segurança. Além das "capacidades tecnológicas" que Jorge apresentou, ele explicou como "construir uma narrativa" que difundiria com a ajuda de uma gama de serviços: redes de bots, informação falsa e o hackeamento de adversários.

Jorge se gabou de ter usado táticas desse tipo em 33 campanhas presidenciais, 27 das quais bem-sucedidas, uma afirmação difícil de confirmar. Ele não revelou nenhuma informação sobre seus clientes.

A AIMS (Advanced Impact Media Solutions) é uma plataforma online pela qual, segundo Jorge, ele conseguiria difundir narrativas usando um exército de avatares sediados por uma plataforma online e dirigidos por ela. Essa ferramenta não pode ser encontrada em buscas na internet.

Ainda em 2017, Jorge ofereceu à Cambridge Analytica um "sistema de criação e utilização de rede de avatares semiautomatizados", acompanhado de um vídeo de demonstração que ilustrava como era simples criar avatares numa plataforma que permitia a navegação de uma conta para outra.

Em 2022, ele tinha um catálogo de mais de 30 mil perfis automatizados de pessoas virtuais com contas reais no Facebook, no Twitter, no Instagram e na Amazon. Jorge usava essas contas falsas para postar uma enxurrada de comentários em redes sociais e provocar controvérsia. Jorge relatou como uma avatar loira chamada Shannon Aiken usava uma conta na Amazon para encomendar brinquedos sexuais para um rival político de um de seus clientes, levando a esposa do candidato rival a acreditar que ele tinha sido infiel. "Depois disso a história foi vazada. O rumo da campanha mudou completamente", disse Jorge.

Para provar a eficácia de seu exército digital, Jorge concordou em criar uma hashtag em nome dos jornalistas infiltrados e fazê-la viralizar. Os jornalistas sugeriram #RIP_Emmanuel (descanse em Paz_Emmanuel), homenagem a um emu, animal que virou astro da internet no verão de 2022.

O objetivo: espalhar o boato de que o animal havia morrido, para testar a eficácia dos avatares do AIMS. Com a campanha nas redes sociais lançada, nosso consórcio rastreou a hashtag para identificar contas adicionais controladas pelo Team Jorge. A partir delas, rastreamos 20 campanhas de desinformação em quase todos os continentes —mas nem sempre foi possível identificar os clientes dessas campanhas.

Em 2020, alguns dos mesmos avatares participaram de campanha de difamação do empresário George Chang, de Hong Kong, dono de 90% do porto do Panamá. No mesmo ano, bots socorreram Tomás Zerón de Lucio, ex-funcionário do governo mexicano e alvo de mandado internacional de prisão. Ele, diretor do órgão encarregado de investigações criminais no México entre 2013 e 2016, é acusado de sequestro, tortura e manipulação de provas na apuração sobre o desaparecimento de 43 estudantes em 2014.

Zerón autorizou a compra do software de espionagem Pegasus pelo México e agora está foragido em Israel, que se recusa a extraditá-lo. Mas, segundo os bots de Jorge, essas acusações não passam de uma campanha orquestrada contra um "inocente" pelo "presidente corrupto" do México, Andrés Manuel López Obrador. "O sr. Zerón não é responsável por qualquer campanha publicitária em seu benefício e não sabe quem é responsável por cada comentário feito nas redes sociais", disse sua advogada Liora Turlevsky.

A ferramenta AIMS não se limita à criação de avatares. A versão mais recente, que foi mostrada aos jornalistas infiltrados, também é capaz de criar e disseminar conteúdos automatizados.

Para demonstrar uma de suas armas mais eficazes, Jorge assumiu controle dos sistemas de mensagens privadas de vários funcionários africanos. "Já entramos", disse ele aos jornalistas, que observaram duas contas do Gmail, um Google Drive e um catálogo de endereços. Uma vez tendo penetrado o sistema de mensagens de uma vítima, Jorge era capaz de criar conversas falsas com seus contatos. Ele passou a enviar mensagens aos familiares dos hackeados a partir de suas contas de Telegram hackeadas.

Foi apenas quando visitaram o escritório de Jorge em Modi’in, sede da indústria de alta tecnologia israelense, que os jornalistas de nosso consórcio viram seu rosto. Jorge sempre conseguiu esconder as informações a seu próprio respeito, mesmo de seus parceiros mais próximos.

Alexander Nix, o diretor da Cambridge Analytica, que o conhecia apenas por seu pseudônimo, perguntou ainda em maio de 2015, em e-mail ao qual tivemos acesso: "Qual é o sobrenome de Jorge, por favor, e o nome de sua empresa". Brittany Kaiser, a denunciante no escândalo da Cambridge Analytica, respondeu no dia seguinte em um e-mail: "Tal Hanan é o CEO da Demoman International".

Após meses de investigação, o Forbidden Stories rastreou a trajetória profissional de Hanan e mapeou os contornos de sua galáxia. Um grupo de ex-funcionários de inteligência e especialistas em comunicação e segurança confirmou a extensão e a natureza das atividades de Hanan.

Mashi Meidan, que nos anos 2010 dirigiu uma empresa israelense de segurança no Panamá, teve participação destacada nas reuniões com os jornalistas, o que sugere que seria uma figura próxima a Hanan. De acordo com várias fontes, ele é ex-membro do Shabak, o serviço de inteligência doméstica israelense, também conhecido como Shin Bet. Segundo seus advogados, Meidan "foi funcionário do governo até 2006, quando se aposentou", mas "não possui nem nunca teve vínculos com uma empresa ou entidade chamada Team Jorge e com toda certeza não é sócio empresarial em tal empreendimento".

Mas Meidan participou de reuniões presenciais com Hanan e da maioria dos encontros online com ele nas quais seus colegas apresentaram sua gama de serviços. Shuki Friedman, também presente em uma reunião com os jornalistas e em outra com Hanan, seria ex-funcionário do serviço de inteligência doméstico de Israel. Foi responsável pela inteligência em Ramallah, na Palestina, por muitos anos.

Outra pessoa presente em duas reuniões com os jornalistas, mas não com Hanan, foi Yaakov Tzedek, chefe do Tzedek Media Group, que se apresentou como "especialista digital e publicitário há mais de uma década". Ishay Shechter, diretor estratégico da Gorem Amir, importante firma de lobby israelense, participou de uma reunião com os jornalistas que os levou a Hanan. Respondendo a perguntas do consórcio, escreveu que "nunca teve um relacionamento de negócios com Jorge ou Tal Hanan".

Finalmente, Zohar Hanan, irmão de Tal, é CEO de uma empresa de segurança privada e especialista em polígrafos. Ele disse ao consórcio que "a vida toda trabalhou em conformidade com a lei".

Segundo uma biografia no site da Demoman, Hanan integrou as Forças Especiais israelenses, numa unidade de elite de eliminação de explosivos. Como seus negócios, sua carreira passou da eliminação de explosivos para a inteligência. Apesar de Jorge permanecer invisível por anos, Hanan atraiu a atenção de pelo menos um serviço de inteligência europeu em 2008, segundo uma fonte policial, devido à oferta de serviços de segurança dúbios na sequência de várias conferências sobre contraterrorismo.

Ao longo de seus anos trabalhando com inteligência, Hanan cultivou uma rede de contatos internacionais impressionante. Segundo a Bloomberg, em 2006, quando estava a serviço de um banco panamenho, Hanan alertou Martin Rodil, então analista do Fundo Monetário Internacional, para transferências de recursos da estatal petrolífera venezuelana PDVSA para o Irã, violando sanções dos EUA.

Hanan então teria sugerido rastrear o dinheiro para Rodil, segundo a Bloomberg. Um ano depois, os dois decidiram compartilhar suas informações com o governo israelense e passaram dois dias respondendo a perguntas do Serviço Secreto. Juntos, fundaram a Global Resources Solutions, que oferecia inteligência financeira e de segurança. Hoje Rodil está sendo investigado na Espanha por alegada extorsão de ex-funcionários governamentais venezuelanos. Ele não respondeu a vários pedidos de declarações.

Durante reunião com jornalistas em agosto de 2022, Hanan citou Roger Noriega, ex-vice-secretário de Estado no governo do presidente George W. Bush, como ex-associado seu. Procurado, Noriega, que também ajudou a traçar uma postura política de intransigência em relação ao regime de Hugo Chavez, admitiu conhecer Hanan, mas disse: "Não tenho qualquer conversa de peso com ele há seis ou sete anos. Tivemos clientes em comum ligados à Venezuela, mas nunca tive negócios sérios com Tal".

Hanan afirma utilizar as ferramentas mais avançadas do mercado em seus serviços de manipulação. Em suas demonstrações ao vivo, ele apresentou serviços da TA9, subsidiária da empresa Rayzone, cujo logotipo havia deletado em sua apresentação. Procurada pelo Forbidden Stories, a TA9 disse que nunca teve qualquer contato de negócios com Hanan ou associados dele e explicou que os screenshots de seus produtos podem ser obtidos facilmente de seu site na internet ou em apresentações online.

A Rayzone também vende ferramentas que permitem a coleta de dados pessoais e de localização por meio da internet ou de redes de telefonia. Ela utiliza a rede SS7, usada para direcionar ligações e SMS de usuários telefônicos a seus clientes e para localizar seus aparelhos. Esse sistema tem vulnerabilidades que permitem que hackers acessem os dados de usuários de celulares. Nos encontros com os jornalistas, Hanan falou diversas vezes da potencial exploração dessas vulnerabilidades.

Questionada sobre os produtos, a Rayzone só mencionou um, que, segundo ela, "possibilita a localização apenas, sem capacidades ativas de interceptação", e que é regulado pelo Ministério da Defesa israelense.

Segundo o jornal israelense Calcalist, David Avital, acionista de uma das subsidiárias da Rayzone, está abrigando Zerón, o ex-funcionário governamental mexicano que é alvo de um mandado internacional de prisão e cuja inocência foi defendida por avatares AIMS. Turlevsky, a advogada de Zerón, disse: "O sr. Zerón está em Israel, de fato, mas nunca residiu em um apartamento pertencente a David Avital".

Na investigação dessa rede, o Forbidden Stories se deparou várias vezes com linhas divisórias ofuscadas entre empresas privadas e Estados, além dos mundos interligados da inteligência, influência e espionagem cibernética. Mas restam perguntas sobre como Hanan é pago por seus serviços.

O Forbidden Stories e seus parceiros tiveram acesso a um folheto enviado por Hanan à Cambridge Analytica em 2015 para oferecer seus serviços. O material deu uma ideia do custo desses serviços. O documento um tanto vago de pouco mais de três páginas é intitulado "eleições, inteligência e operações especiais" e sugere que o autor tinha experiência em campo desde 1999.

É o mesmo ano em que foi fundada a Demoman, a empresa da qual Hanan é o CEO. No folheto, Hanan propõe opções "que se interalimentam e enriquecem", combinando "inteligência estratégica", "percepção pública", "guerra de informação", "segurança de comunicações" e um "pacote especial" para o "Dia D".

O folheto elogia sua equipe, composta de ex-agentes de serviços de inteligência e forças especiais de Israel, EUA, Espanha, Reino Unido e Rússia. Segundo o folheto, a equipe também inclui "especialistas em mídia e meios de comunicação de massa" que conhecem "as melhores maneiras de usar a informação para transmitir uma história, uma mensagem ou um escândalo, para criar os efeitos desejados".

De acordo com o folheto, Hanan cobraria US$ 160 mil por uma "fase inicial de pesquisas e preparação" de oito semanas, mais US$ 40 mil para despesas de viagem —foi um preço muito inferior ao que ele propôs aos repórteres do consórcio em 2022: 6 milhões de euros por uma campanha.

Mas não era por meio da Demoman que Hanan oferecia seus serviços de hacking. E por um bom motivo: a empresa é registrada junto ao Ministério da Defesa de Israel. Segundo a lei israelense, é ilegal vender serviços de hacking a indivíduos ou empresas ou para uso em campanhas políticas no exterior.

Nas reuniões com os jornalistas, Hanan afirmou ter cerca de cem funcionários em todo o mundo. Embora não tenha sido possível confirmar o número, a Demoman diz em seu site ter escritórios e representantes em Israel, EUA, Suíça, Espanha, Croácia, Filipinas e Colômbia. Também foram citados endereços no México e na Ucrânia, mas, segundo Hanan, foram fechados devido a uma queda nos negócios e à guerra.

Na mesma reunião, o irmão de Hanan também alegou estar usando bots AIMS para apostar no mercado de criptomoedas e, desse modo, conseguir lucros adicionais. Qualquer coisa para faturar um dólar.

Tradução de Clara Allain

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