Descrição de chapéu Guerra da Ucrânia Rússia

Ucranianos retornam ao país mesmo no auge da guerra contra a Rússia

Movimento, permanente ou temporário, chama a atenção em meio a conflito que não dá sinais de esmorecer

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

São Paulo

Desde que a Rússia invadiu seu país, Valeria Shashenok, 21, mudou-se muitas vezes. Foi da Ucrânia para a Polônia, da Polônia para a Alemanha, da Alemanha para a Itália, da Itália de volta para a Alemanha.

Em setembro, voltou à terra natal —ou a uma versão dela arruinada pelo conflito, como mostrou no Tiktok, onde ganhou fama registrando o cotidiano de refugiada. "Estava cansada, sem apartamento e não me sentia em casa", afirma Shashenok ao justificar o regresso à Ucrânia, de onde seus pais nunca saíram.

A jovem conta que, de certa forma, a vida segue em várias regiões do país, e "as pessoas continuam a ir a bares e restaurantes e a andar por aí". Ainda assim, os blecautes constantes, assim como a falta de água, consequência dos mísseis lançados desde outubro pelas tropas russas contra a infraestrutura do território, fizeram com que, em dezembro, ela partisse para Londres, onde hoje mora com uma família.

Assim, Shashenok é um exemplo dos muitos ucranianos que têm retornado à Ucrânia, seja para visitas temporárias ou de forma permanente. É um tipo de movimento migratório que, para Roberto Rodolfo Georg Uebel, professor de relações internacionais da ESPM (Escola Superior de Propaganda e Marketing) de Porto Alegre, é inédito no contexto de uma guerra que não dá sinais de esmorecer.

Mulher com bebê de dois meses nos braços em um abrigo em Przemisl, perto da fronteira da Polônia com a Ucrânia
Mulher com bebê de dois meses nos braços em um abrigo em Przemisl, perto da fronteira da Polônia com a Ucrânia - Louisa Gouliamaki - 15.mar.22/AFP

O êxodo em massa de ucranianos quando o conflito estourou pegou as nações vizinhas de surpresa pela rapidez com que se deu. Em menos de uma semana, ao menos 660 mil pessoas haviam fugido pelas fronteiras a oeste do território. Em cerca de um mês, a Europa abrigava mais de 3 milhões de refugiados ucranianos —hoje, a ONU estima que esse número tenha chegado a cerca de 8 milhões.

Mas já em abril passado, dois meses após o início do conflito, muitos ucranianos começaram a voltar ao país. De acordo com o Acnur (Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados), enquanto a quantidade de travessias para fora da Ucrânia nas fronteiras foi de 18,8 milhões ao longo do conflito, aquelas em direção ao território invadido somam 10,4 milhões, mais da metade do número de saídas.

Em algumas divisas, como a da Polônia, com o maior contingente de refugiados ucranianos na Europa ocidental, dados mostram inclusive equivalência no fluxo de entrada e de saída nos últimos oito meses.

Louise Donovan, porta-voz do Acnur para a Europa, alerta que muitos desses movimentos são pendulares e têm como objetivo visitar parentes e checar propriedades, por exemplo. "Eles não necessariamente indicam regressos a longo prazo, uma vez que a situação no país continua volátil e imprevisível", diz ela.

A brasileira Adriana Negri do Egito, que coordena um centro de acolhimento da entidade na fronteiriça Rzeszów, na Polônia, diz ver ucranianos entrarem para fazer compras e em seguida voltarem à terra natal.

Como os dados do Acnur contabilizam travessias de fronteira, não de indivíduos, sem especificar o tempo que cada pessoa permaneceu no país, é difícil estimar quantas elas são. Mas um relatório da agência da ONU para migrações (OIM) feito a partir de entrevistas com uma amostra de quase 24 mil indivíduos em fronteiras de países a oeste da Ucrânia pode dar alguns indícios sobre o perfil dessas pessoas.

Questionados sobre o motivo do retorno, 41% disseram estar voltando permanentemente, 40% para uma visita breve, e 19% não tinham certeza de seus planos. Além disso, 97% tinham nacionalidade ucraniana, entre os quais 87% eram mulheres —refletindo o fluxo de refugiados majoritariamente feminino do início da guerra, uma vez que o país, sob lei marcial, proibiu homens de 18 a 60 anos de saírem da Ucrânia.

Uebel, da ESPM, afirma que uma série de fatores influencia esses movimentos de retorno. Alguns deles são compartilhados com migrantes de outras nacionalidades, como a dificuldade de aprender a língua do lugar que os acolheu e os obstáculos para encontrar emprego —mesmo que os ucranianos tenham em geral recebido mais amparo dos governos do continente do que refugiados de outras nacionalidades.

Mas outras razões são específicas da Ucrânia. Uma delas é a proximidade do país com a Europa central, o que facilita o vaivém dos migrantes. "As guerras recentes na Europa sempre estiveram muito distantes", diz Uebel, citando conflitos na região dos Balcãs nos anos 1990. "Hoje você tem um conflito que faz fronteira com a União Europeia e com a Otan. E isso acaba respingando na questão migratória."

Outro elemento que explica muitos dos regressos é a sua composição majoritária de mulheres, muitas das quais acompanhadas de filhos ou pais idosos. Relatório recente do Acnur afirma que, nos dez países europeus que integram o Plano de Resposta a Refugiados, mulheres e crianças representam 86% do total de migrantes ucranianos, bem acima da média global, de 48%.

"A separação das famílias é uma marca da crise ucraniana de refugiados. No contexto atual, tem levado a uma grande proporção de casas em que há apenas um cuidador, em geral uma mulher", diz Donovan.

A porta-voz acrescenta que essa situação prejudica a integração socioeconômica das mulheres aos lugares para onde emigraram, uma vez que a dificuldade de matricular filhos em creches ou escolas pode se tornar um obstáculo para que trabalhem e garantam, assim, sua independência financeira.

Egito, a brasileira que atua no acolhimento na fronteira, conta que melhorar a situação dessas refugiadas foi uma de suas prioridades ao assumir a coordenação do centro comunitário do Acnur em Rzeszów.

A solução que encontrou foi criar um espaço para as crianças, com atividades didáticas e de recreação, além de apoio psicológico, enquanto as mães procuram emprego ou frequentam aulas e oficinas.

Uebel acrescenta que a pressão de Zelenski por fundos para reconstruir o país pode estar influenciando os cidadãos a voltar. O discurso tem sido ecoado por dirigentes europeus, apesar de a guerra parecer longe do fim. Afinal, diz o professor, trata-se de uma forma de prevenir uma crise ainda maior no futuro. "Reconstruir é evitar que você tenha um fluxo de 40 milhões de ucranianos em vez de 8 milhões."

Shashenok, a jovem refugiada ucraniana, afirma que os obstáculos que tem vivido em seu cotidiano não têm a ver com sua experiência como refugiada, mas com assistir a tantas mortes no país onde nasceu. "Não posso reclamar da minha vida", diz ela, que perdeu um primo na guerra. O máximo de planejamento que se permite é, digamos, se vai ou não ao cinema em determinado dia. "Essa é uma das perguntas mais estranhas a se fazer a qualquer ucraniano hoje. Porque nunca se sabe o que pode acontecer."

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.