Brasil diz na ONU que pode acolher expatriados por ditadura da Nicarágua

Missão brasileira manifesta preocupação com relatórios sobre execuções, tortura e prisões políticas pelo regime de Ortega

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São Paulo

Cerca de um mês após o regime de Daniel Ortega na Nicarágua retirar a nacionalidade de mais de 300 opositores, o Brasil disse estar disponível para receber os expatriados. O aceno ocorreu nesta terça-feira (7), na ONU, durante sessão do Conselho de Direitos Humanos.

Durante breve fala, o embaixador Tovar da Silva Nunes disse que Brasília vê com "extrema preocupação" a decisão de expatriar os dissidentes e aas notícias de violações de direitos humanos e de restrição do espaço democrático no país da América Central.

Apoiador do ditador Daniel Ortega com bandeira da Frente Sandinista de Libertação Nacional, partido governista, nas ruas de Manágua
Apoiador do ditador Daniel Ortega com bandeira da Frente Sandinista de Libertação Nacional, partido governista, nas ruas de Manágua - Oswaldo Rivas - 11.fev.23/AFP

O chefe da delegação permanente do Brasil em Genebra também mencionou os relatórios de que há execuções extrajudiciais, tortura de dissidentes políticos e detenções arbitrárias na Nicarágua e disse que o Brasil apoia o diálogo com o regime de Ortega.

A movimentação vem após um grupo independente de especialistas do Conselho de Direitos Humanos divulgar um relatório no qual compara as práticas adotadas por Ortega e Rosario Murillo, a número 2 da ditadura nicaraguense, ao regime nazista de Adolf Hitler.

Antes do Brasil, o Chile já havia oferecido nacionalidade para as centenas de expatriados, muitos dos quais já exilados —outros eram presos políticos e foram enviados para os EUA. O governo da Espanha também havia proposto o mesmo benefício, e a Argentina manifestou a intenção de conceder cidadania.

Ainda está pouco claro o procedimento que será adotado pelo Brasil, dentro do guarda-chuva da Lei de Migração, para acolher expatriados. Dados do Ministério da Justiça enviados à Folha em janeiro mostram que, de 2016 a 2022, 55 nicaraguenses solicitaram refúgio no país. O número é ínfimo em comparação com o total das solicitações no período —310 mil—, mas seu histórico mostra o caminho do endurecimento do regime na nação centro-americana. Os pedidos de refúgio crescem em 2018, com 21 solicitações, quando protestos contra uma reforma da Previdência catalisaram atos de insatisfação.

O Brasil vinha sendo criticado por não se manifestar de maneira enfática sobre as arbitrariedades de Ortega, líder que, após combater uma ditadura nos anos 1970, organizou o seu próprio regime autoritário.

Ainda assim, o chanceler Mauro Vieira reconheceu, em entrevista à Folha, que Manágua já não representa uma democracia. Algumas alas do PT são próximas à Frente Sandinista de Libertação Nacional, embora parte delas tenha se distanciado do partido de Ortega a partir da guinada autoritária conduzida pelos sandinistas, que inclui eleições de fachada, detenção de opositores e cooptação do Judiciário. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva já chegou a aconselhar o ditador a "não abrir mão da democracia".

Na última semana, o Brasil não se somou a uma declaração de mais de 50 países condenando as medidas do ditador. Diplomatas avaliaram que o conteúdo do texto não deixava uma porta aberta para negociações com o regime nicaraguense e, portanto, seria melhor não endossá-lo. Como mostrou a Folha, o Itamaraty preparava a posição que foi lida nesta terça.

Para o cientista político nicaraguense Humberto Meza, pesquisador da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), o gesto humanitário brasileiro chega com atraso, mas ainda assim deve ser saudado, em especial pela relevância do país na região da América Latina.

"O Brasil é um país muito importante para colaborar com uma saída democrática. Mas nesse jogo todo existe uma variável que é Ortega, que ninguém controla", diz ele, que é membro do Comitê Brasileiro de
Solidariedade com o povo da Nicarágua, um comitê formado por brasileiros e nicaraguenses.

Meza questiona como seria o diálogo proposto pelo Brasil, em especial se haveria participação da oposição. "Considerando as condições que o país vive —ainda há 35 presos políticos—, vemos que o regime da Nicarágua não reconhece os atores de oposição para dialogar."

"Qualquer diálogo ou negociação precisa reconhecer atores que estão fora do país e foram desterrados. Eles têm de ter a nacionalidade reintegrada, deixar de ser apátridas. E tem que haver compromisso de imprensa livre no país", completa.

Enquanto isso, as sinalizações do regime de Ortega são bem distintas. Nesta terça-feira o regime encerrou as atividades de duas universidades ligadas à Igreja Católica, outro setor perseguido por Manágua.

A ditadura alegou que as instituições descumpriram a lei fiscal do país. Os estudantes das instituições —Universidade Juan Pablo 2º e Universidade Cristiana Autônoma— serão encaminhados para outros locais de ensino, e os bens das instituições, apropriados por Manágua.

Nesta segunda (6), a ditadura também cancelou a permissão para que 18 associações empresariais funcionassem. Alguns dos líderes das organizações, como Adán Aguerri, que liderou o Conselho Superior das Empresas Privadas, eram opositores conhecidos do regime.

Aguerri foi detido em 2021, no meio de uma onda de repressão que levou às prisões nicaraguenses mais de 200 opositores. Ele está no grupo de 222 ex-presos políticos liberados, expatriados e enviados aos EUA pelo regime no início de fevereiro.

O Comitê Brasileiro de Solidariedade com o povo da Nicarágua, por meio de carta aberta ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e a Mauro Vieira, acrescentou nesta terça que o Brasil deveria usar qualquer tipo de diálogo com a Nicarágua para "exigir justiça" pelo assassinato da estudante de medicina Raynéia Gabrielle Lima.

A brasileira de 31 anos foi morta em Manágua em 2018 a tiros. O autor do crime, o vigilante Pierson Gutiérrez Solís, foi liberado em julho de 2019 mesmo após ser condenado a 15 anos de prisão. "Este caso impele o Brasil a exigir a devida investigação e reativação do julgamento tomando em consideração a voz da família vitimizada", diz a carta.

Com AFP

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