Burocracia e app falho frustram migrantes que tentam entrar nos EUA

Gestão Biden endurece medidas da era Trump para impedir travessias na fronteira

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Washington | The New York Times

Etienne Termulis passou nove dias tentando marcar um agendamento com o governo dos Estados Unidos para ter uma chance de pedir asilo.

O processo faz parte de um novo plano de gestão de fronteiras que o governo Biden anunciou este ano para diminuir o número de travessias ilegais na divisa com o México. Mas ativistas em defesa da imigração dizem, e as experiências de alguns migrantes mostram, que ele está longe de ser o sistema "justo, ordeiro e humano" que o presidente prometeu.

Silhurta de pessoas entre monumento e grade com entardecer ao fundo
Pessoas passam ao lado de grade na fronteira com os Estados Unidos na cidade mexicana de Playas de Tijuana - Guillermo Arias - 16.fev.23/AFP

Para preencher um formulário para o programa do governo, os migrantes devem usar um aplicativo, chamado CBP One, em um smartphone num local com bom acesso à internet. Foi aí que as coisas ficaram complicadas para Termulis, que é haitiano.

Como o abrigo onde ele estava hospedado em Reynosa, no México, não tinha internet, ele, a mulher e a filha de seis anos tiveram que se aventurar no centro da cidade para encontrar sinal. Reynosa é uma das cidades mais violentas do país, dominada por cartéis que sequestram, estupram e extorquem migrantes.

"Tenho que arriscar minha vida apenas para conseguir um agendamento", disse Termulis, 47, sobre as repetidas viagens à cidade.

Termulis e sua mulher lutaram para tirar a foto exigida para o reconhecimento facial pelo aplicativo. Quando enfim tiraram a foto e conseguiram subi-la no sistema, não havia mais horários.

As dificuldades que Termulis enfrentou são apenas algumas das complicações do plano de fronteira criado pelo presidente Joe Biden.

Biden assumiu o cargo prometendo devolver a humanidade ao sistema de imigração e reabrir o acesso a asilo depois de o governo Trump restringi-lo sistematicamente. Dois anos depois, críticos dizem que as políticas de imigração do governo Biden são menos focadas em restaurar o direito internacional de buscar asilo e mais em medidas policiais para impedir que migrantes que fogem de países autoritários e da devastação econômica entrem nos Estados Unidos.

O objetivo do governo Biden ao recorrer a essas medidas cada vez mais restritivas tem dois objetivos. Um é administrar o número recorde de travessias de fronteira em meio a ataques republicanos implacáveis. O outro é se preparar para o vencimento, em 11 de maio, da medida de saúde pública conhecida como Título 42, que permitiu que as autoridades expulsassem migrantes rapidamente.

O plano de Biden tem vários componentes. Ele expande o uso de um aplicativo do governo para os migrantes solicitarem visto humanitária por meio do Título 42, que praticamente interrompeu acessos a asilo desde o início da pandemia de coronavírus.

O governo também criou vias legais para indivíduos vindos de Cuba, do Haiti, da Nicarágua e da Venezuela se qualificarem para uma estadia de dois anos nos Estados Unidos, além de expulsar pessoas desses quatro países para o México caso eles cruzassem a fronteira ilegalmente. Aquelas que o fazem também não têm direito ao programa humanitário de liberdade condicional.

Ativistas que atuam em defesa dos direitos dos imigrantes criticam as políticas por tentarem lidar com problemas imediatos em vez de buscar mudanças mais amplas. Elas alcançaram, porém, o objetivo do governo de reduzir o número de travessias de fronteira.

As opções são confusas, e migrantes e ativistas dizem que o governo dos EUA não comunicou claramente as novas políticas aos migrantes.

Em alguns casos, os migrantes não conhecem nenhuma das opções; quando conhecem, não sabem se têm direito a elas. Se um migrante não tiver um fiador preparado para apoiá-lo nos Estados Unidos, a opção de isenção humanitária é a melhor para ele. Para os migrantes que esperam no México há meses pelo fim do Título 42, solicitar a isenção humanitária pode parecer o caminho mais rápido para chegar aos Estados Unidos.

O pedido de liberdade condicional humanitária começa com um fiador nos Estados Unidos que se compromete a dar apoio financeiro ao imigrante durante dois anos. Depois que o governo aprova o fiador, o imigrante envia informações adicionais e deve ter documentos oficiais de viagem, como visto ou passaporte, para entrar nos Estados Unidos.

Os haitianos, especialmente, enfrentaram problemas com o novo programa porque seu governo não consegue emitir documentos oficiais de viagem de forma previsível. Desde o assassinato do presidente do Haiti, em julho de 2021, o país caribenho tornou-se cada vez mais instável, cada vez mais controlado por bandos criminosos.

Desde que o programa foi anunciado, muitos haitianos têm lotado centros locais de migração com malas e sacolas, tentando obter documentos, afirma a deputada democrata Sheila Cherfilus-McCormick, da Flórida, que acompanha de perto as questões dos migrantes haitianos. Uma reportagem local afirma que extorsionários têm exigido grandes somas de dinheiro para fornecer documentos a eles.

Cherfilus-McCormick diz que o governo Biden precisa criar um processo que leve em consideração os desafios específicos de pessoas oriundas de países específicos. "Pedimos que eles analisassem as circunstâncias e criem um processo que realmente funcione", conta ela.

Apesar dos problemas para obter acesso ao programa, Biden apontou-o como um sucesso em seu discurso do Estado da União no mês passado.

A liberdade condicional é uma das poucas opções que o Poder Executivo pode oferecer sem o aval do Congresso.

"Esta é uma abordagem muito inovadora para a construção de caminhos legais e seguros com base no ponto fundamental, que historicamente se provou verdadeiro", disse recentemente Alejandro Mayorkas, secretário de Segurança Interna. "Essas pessoas vão esperar se lhes dermos um caminho legal e seguro para virem para cá."

Vinte estados liderados por republicanos discordam, dizendo que o programa de liberdade condicional humanitária é essencialmente um novo programa de vistos que o Congresso não aprovou.

Defensores dos direitos dos imigrantes e alguns democratas também criticam o novo plano, mas por razões diferentes. Segundo eles, essas e outras medidas que o governo disse que implementará —assim como políticas que estão sendo consideradas, como reviver a prática de deter famílias migrantes— têm semelhanças impressionantes com as políticas da era Trump que foram amplamente criticadas porque restringiam o acesso a asilo.

Antes das restrições da era Trump, os migrantes podiam solicitar asilo quando cruzavam a fronteira. Funcionários do governo Biden rejeitam qualquer comparação com o governo anterior e dizem que suas políticas buscam encontrar maneiras de diminuir o número de travessias ilegais e expandir a capacidade dos migrantes de buscar caminhos legais.

Atualmente, as autoridades de fronteira podem expulsar rapidamente os migrantes sob o Título 42. Mas o governo afirma que planeja continuar as expulsões para o México por meio da antiga lei de imigração, e que vai acelerar o processo de triagem dos migrantes para ver se eles temem perseguição —processo que defensores da imigração caracterizam como análises de asilo apressadas.

A outra opção, que não é um caminho legal, mas sim uma maneira mais segura de chegar aos Estados Unidos do que atravessar o Rio Grande a nado, tem feito migrantes que aguardam no México se levantar de madrugada para tentar o agendamento pelo CBP One antes que o aplicativo pare de funcionar. Os agendamentos são preenchidos em 10 a 15 minutos.

Tirar a fotografia com o aplicativo era especialmente difícil —problema que defensores e migrantes disseram ter surgido entre muitas pessoas com tons de pele mais escuros.

"As pessoas tentam durante horas simplesmente tirar uma foto, e o aplicativo não consegue reconhecer seus rostos", disse Guerline M. Jozef, cofundadora e diretora executiva da Haitian Bridge Alliance, organização que ajuda pessoas em busca de asilo. "Os migrantes estavam tentando de tudo. Nas tendas, era muito escuro; lá fora, o sol estava muito forte. Nada dava certo."

Jozef passou vários dias no México no início de janeiro e fevereiro, explicando as novas opções a milhares de migrantes.

No abrigo Kaleo em Reynosa, onde a família Termulis estava hospedada, há comida, alojamento e assistência médica para os migrantes. Mas um bom serviço de internet ainda é um desafio, diz Felicia Rangel-Samponaro, diretora do abrigo.

Termulis acabou agendando uma entrevista para ele e sua mulher, mas, numa reviravolta frustrante, nenhum dos dois conseguiu adicionar a filha ao aplicativo. Ele entrou na Califórnia em 15 de fevereiro, após sua entrevista, enquanto sua mulher e a filha permaneceram no México.

"Chorei como uma criança naquele momento", disse Termulis quando soube que sua família não iria se juntar a ele imediatamente.

Elas afinal conseguiram marcar um encontro para 8 de março e cruzaram com sucesso para os Estados Unidos. Mas outros migrantes tiveram menos sorte, mesmo tentando garantir vagas desde janeiro, segundo Jozef.

Um autoridade de Segurança Interna afirmou que o aplicativo foi recentemente atualizado para disponibilizar agendamento de grupos, para que uma família completa possa fazer a travessia para os EUA ao mesmo tempo.

Quando questionado sobre problemas no aplicativo do governo, como para tirar fotos e dificuldade para conseguir agendamento, Mayorkas disse estar ciente deles.

"De tempos em tempos, há problemas com isso e os resolvemos muito rapidamente", afirmou ele em 2 de fevereiro. "Estamos atentos a eles e a seu impacto na capacidade das pessoas de acessar a ajuda que oferecemos." Mas milhares de pessoas já tiveram sucesso com o aplicativo, afirmou.

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves 

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