Guerra da Ucrânia acelera necessidade do acordo UE-Mercosul, diz embaixador

Ignacio Ybáñez diz que cúpula entre bloco e Celac em julho seria momento ideal para anunciar que tratativa foi bem-sucedida

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São Paulo

O prazo estipulado pelo governo Lula 3 para tirar o acordo entre Mercosul e União Europeia (UE) do papel —até metade do ano— pode parecer ambicioso para uma negociação que se arrasta há mais de 20 anos. O embaixador do bloco no Brasil afirma, porém, que a própria UE vê uma conclusão como urgente.

Um dos motivos, indica Ignacio Ybáñez em entrevista à Folha, é o cenário criado pela Guerra da Ucrânia, que catalisou a necessidade europeia de buscar novos parceiros confiáveis —trocando em miúdos, fugir da dependência de países como a Rússia.

O embaixador da União Europeia (UE) no Brasil, o espanhol Ignacio Ybáñez, durante entrevista à Folha em São Paulo
O embaixador da União Europeia (UE) no Brasil, o espanhol Ignacio Ybáñez, durante entrevista à Folha em São Paulo - Karime Xavier/Folhapress

O espanhol diz que a área energética —em especial o hidrogênio verde— é uma das que provocam maior interesse do bloco no Brasil, e afirma crer que o país e seus produtos estão prontos para atender às demandas europeias por cadeias de suprimento sustentáveis.

Ainda sobre o conflito no Leste Europeu, discorda que países do Sul Global tendam à neutralidade. Mas reconhece as cobranças de países da região. "O chamado a ser coerente no âmbito internacional é sempre válido. O que ele não pode nunca é ser usado como desculpa."

O governo Lula 3 colocou o acordo entre a UE e o Mercosul como prioridade na agenda externa. Chegou a propor um prazo até a metade deste ano. Mas países como a Argentina já manifestaram incômodo com alguns meandros. Pode-se falar em algum prazo? O acordo sempre foi necessário, e, na situação internacional atual, com a agressão da Rússia à Ucrânia e a convicção de que temos de buscar parceiros confiáveis, este é o momento certo para fazer avançá-lo.

Compartilhamos com o Mercosul valores de democracia, direitos humanos e economia de mercado. O ponto principal que não conseguimos avançar em 2019 era a agenda ambiental. Acordamos então um instrumento adicional para assegurar que todas as partes cumpririam o Acordo de Paris.

A chegada de Lula que, ainda como presidente eleito, foi à COP27, sinalizou que as preocupações que tínhamos podiam ser deixadas de lado. Isso nos anima. Já apresentamos ao Mercosul os elementos centrais desse instrumento adicional, que está sendo discutido. Temos a ambição de que, em julho, quando ocorre a cúpula UE-Celac, possamos fazer o anúncio de que o acordo está finalizado.

O embaixador da UE no Brasil, o espanhol Ignacio Ybáñez, durante entrevista à Folha
O embaixador da UE no Brasil, o espanhol Ignacio Ybáñez, durante entrevista à Folha - Karime Xavier/Folhapress

Acha que o Brasil está preparado para lidar com os requisitos ambientais de países do bloco para permitir que exportações entrem em suas fronteiras? A legislação que a UE vem adotando é fruto da convicção da opinião pública e das instituições de que não podemos criticar o desmatamento, seja no Brasil ou em outros países, e ao mesmo tempo contribuir indiretamente com isso.

Se um produto que foi resultado do desmatamento chega livremente ao mercado europeu, essa atividade está sendo favorecida. A legislação não tem que ser vista como protecionista. Visa contribuir com a responsabilidade comum que temos de reduzir o desmatamento.

O Brasil tem instrumentos suficientes para se preparar para essa situação. Há programas, como os de selo verde, para rastreabilidade do produto. Isso faz a distinção da grande maioria dos produtores, que cumprem a legislação ambiental, daquela minoria que não cumpre a lei.

A crise dos yanomamis mostrou que há áreas onde nem sequer o governo tem controle. Como avalia a resposta do governo Lula? Sempre manifestamos nossas preocupações respeitando a soberania brasileira. Mas o exercício pleno da soberania se cumpre quando o Estado pode fazer cumprir a legislação em todo o seu território.

O que ocorre no território yanomami é uma boa demonstração disso. Estamos cientes de que a situação não muda de um dia para o outro, de que resultados radicais não são imediatos, mas o importante é que a mensagem do presidente Lula e de seu governo é de que a ilegalidade não pode ser respeitada.

A ausência de gás russo fez alguns países como a Alemanha darem passos atrás no plano de criar uma economia neutra. A Guerra da Ucrânia atrasou as metas europeias? Os objetivos se mantêm. Reduzimos as datas para cumprir metas de economia zero. Mas deixamos certa flexibilidade aos Estados para se adaptarem a essa situação.

A situação de guerra criada pela Rússia nos ajuda a dar passos mais rápidos na boa direção. Não podemos utilizar essa situação como desculpa para atrasar nosso objetivo. Nosso desejo é fazer o contrário.

Estamos buscando parceiros confiáveis em outros lugares do mundo, e obviamente no campo energético o Brasil é um país muito interessante, tem recursos naturais, grandes possibilidades no campo do hidrogênio verde.

Países do Sul Global tiveram posicionamento bem diferente dos países do Norte e da Otan. Preferiram adotar certa neutralidade e não cortar laços com a Rússia. Como avalia isso? Uma coisa são as declarações, outra é quando têm de votar. A última resolução da Assembleia-Geral da ONU apresenta números esmagadores [de países que condenaram a guerra].

Não diria que o Sul Global é neutro. Está preocupado com seu próprio desenvolvimento e insiste na necessidade de procurar soluções, porque a guerra, além de causar muita dor nos países afetados, tem implicações no mundo todo. Permitir que um país membro do Conselho de Segurança, como a Rússia, não respeite o direito internacional resulta em um mundo de selva, não de civilização. Diria que a resposta do Sul Global e da comunidade internacional foi muito forte.

Temos preocupações alinhadas às dos países do Sul, como a necessidade de buscar soluções, e estamos trabalhando nessa direção, por exemplo ao deixar fertilizantes e produtos alimentares fora das sanções.

Além da razão econômica, análises apontam que a apatia do Sul envia uma mensagem ao Norte, já que também resulta da maneira como Europa e EUA lidaram com crises nesses países. O que pensa? A lição que todos têm de ter é a da importância de respeitar o direito internacional, independentemente de onde ocorram as crises.

É uma reclamação legítima. O chamado a ser coerente no âmbito internacional é sempre válido, e o respeitamos plenamente. O que ele não pode ser nunca é usado como desculpa.

A China é a principal parceira comercial da UE. Mas, nos últimos meses, líderes do bloco têm dado sinais de que querem diminuir essa dependência. Como está essa relação? Continuamos tendo uma relação muito próxima. Logicamente fazemos questão de discutir sobre o que não concordamos, como violações de direitos humanos. Mas há áreas em que a cooperação funciona bem, sobretudo no âmbito multilateral.

No caso da agressão russa, relembramos à China que o país não pode querer ser uma potência se não baseia suas ações no pleno respeito do direito internacional. A China poderia fazer mais nessa direção. Mas não somos um bloco que gosta de exclusões. Não interrompemos os diálogos de alto nível. Queremos uma relação de proximidade.

O presidente Lula em breve viaja a Pequim. E a China tem tentado ampliar laços com a América Latina. Como o sr. vê esse movimento? Com normalidade. Com a expansão da China, é normal que o país esteja mais presente em todo o mundo. Antes éramos o primeiro parceiro comercial do Brasil, agora já somos o segundo, com a China à frente. Respeitamos o crescimento deles. Obviamente, temos uma forma diferente de fazer as coisas. Com o Brasil, temos alguns elementos distintos, como uma história comum e valores compartilhados.

O Brasil em dezembro deste ano vai assumir a presidência do G20, o que vai dar a ele uma responsabilidade extra. Também segue membro não permanente do Conselho de Segurança. Os contatos do Brasil com seus parceiros, incluindo a China, são perfeitamente compreensíveis.

Como vê a ampliação do número de assentos permanentes no Conselho de Segurança e o possível ingresso do Brasil nessa categoria? É tempo de discutir o funcionamento do Conselho de Segurança. O abuso do direito de veto está limitando muito as funções do colegiado.

A UE segue desejando a possibilidade de participar do Conselho, mas, enquanto isso não acontece, reforçamos o trabalho conjunto. A preparação da recente resolução da Assembleia-Geral foi exemplo disso. A delegação da UE teve um contato muito próximo com o Brasil para acomodar as posições de ambos, em especial no capítulo que falava sobre o diálogo, e o resultado foi muito bom.


Raio-X | Ignacio Ybáñez, 60

Embaixador da União Europeia no Brasil, foi secretário de Estado do Ministério dos Negócios Estrangeiros e Cooperação da Espanha, onde também ocupou o cargo de diretor-geral de Política Externa e Assuntos Globais Multilaterais e diretor-geral para África, Mediterrâneo e Oriente Médio. Também foi embaixador da Espanha na Rússia.

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