Macron compara protestos na França com ataques em Brasília

Depois de longo silêncio, presidente da França sai em defesa da controversa e impopular reforma Previdência

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Toulouse (França)

Depois de dois meses de silêncio, durante os quais sua controversa reforma da Previdência foi conduzida pela primeira-ministra Elisabeth Borne, e sob a pressão de grandes mobilizações de trabalhadores contra a proposta, o presidente da França, Emmanuel Macron, finalmente falou em público sobre a medida impopular.

O presidente da França, Emmanuel Macron, durante entrevista para TV - Ludovic Marin/AFP

"Não tenho nenhum prazer em fazer essa reforma", disse durante entrevista concedida à TV France 2. "Trata-se de uma necessidade financeira porque há uma questão demográfica que coloca o sistema previdenciário em desequilíbrio. Hoje temos 17 milhões de aposentados e, em 2030, teremos 20 milhões. Vocês acham que conseguiremos manter o mesmo sistema?"

Segundo Macron, "a fórmula mágica das propostas apresentadas pela oposição é o déficit". "Se for preciso arcar com a impopularidade para cumprir com minha responsabilidade com o país, eu o farei."

"É preciso dizer: respeitamos, ouvimos, tentamos fazer avançar o país, mas não podemos aceitar nem os rebeldes nem as facções", disse, em referência à escalada de violência em manifestações espontâneas em dezenas de cidades pelo país.

A reforma da Previdência eleva a idade mínima para aposentadoria de 62 para 64 anos até 2030 e prolonga os anos de contribuição para acesso à pensão integral de 42 para 43 anos, já a partir de 2027, o que gerou uma série de protestos que já levaram milhares às ruas.

"É inaceitável quando grupos utilizam violência extrema para agredir parlamentares porque não estão contentes com alguma coisa. Assim como foi inaceitável o que aconteceu nos EUA com a invasão do Capitólio e o que se passou no Brasil [com os ataques às sedes dos Três Poderes em Brasília, em 8 de janeiro]", comparou o francês.

No final de semana, o escritório do líder do partido Republicanos, Eric Ciotti, em Nice, no sul da França, foi apedrejado e pichado. A ação ocorreu dias após manifestantes cortarem o suprimento de energia da casa do senador Bruno Retailleau, da mesma sigla. Outros deputados correligionários relataram ter recebido ameaças por email.

Macron se reuniu nesta terça-feira (21) com a primeira-ministra, o Conselho Ministerial e os presidentes do Senado e da Assembleia. Segundo a imprensa local, Macron teria afirmado que "a multidão" que promove bloqueios e incêndios não tem "nenhuma legitimidade" diante do "povo que se expressa através de representantes eleitos".

Perguntado sobre a declaração na entrevista para a TV, Macron a corrigiu. "Eu falava do contexto de parlamentares que sofreram agressões inaceitáveis por parte de alguns manifestantes. E dizia que os parlamentares são aqueles dotados de legitimidade democrática porque foram eleitos", explicou. "Os sindicatos também têm legitimidade e direito de se manifestar. Mas a violência é inaceitável."

A eclosão de protestos violentos se deu depois que a reforma foi aprovada a partir de um dispositivo constitucional, o artigo 49.3. Evocado pela primeira-ministra, o recurso permite aprovação de projetos de lei apresentados pelo governo mesmo sem a chancela parlamentar, numa medida considerada de baixa densidade democrática e que inflamou os protestos.

"O projeto [da reforma da Previdência] seguiu caminho democrático", defendeu Macron. "Foi feito um ajuste do texto a partir das emendas sugeridas pelo Senado e aceitas pelo governo. Depois, o texto foi consensuado por uma comissão parlamentar mista e, então, o governo evocou sua responsabilidade para utilizar o artigo 49.3."

Segundo Macron, ao utilizar esse dispositivo constitucional, Borne, a primeira-ministra, disse que colocaria seu cargo à disposição para o caso de a Assembleia apresentar uma maioria contrária à medida. Duas moções de censura foram apresentadas por deputados contra o recurso ao artigo 49.3, mas fracassaram.

Desde então, foi levantada a hipótese de que Macron pudesse, ele mesmo, demitir Borne na tentativa de apaziguar os ânimos na Assembleia e nas ruas da França, mas ela foi refutada pelo presidente.

Perguntado se a primeira-ministra ficaria no cargo "por mais algumas semanas ou meses", Macron disse que Borne tem a sua "confiança para conduzir a equipe governamental".

Ele também especificou que pediu a Borne "para construir um programa legislativo de textos mais curtos e mais claros para mudar as coisas para nossos compatriotas de maneira mais tangível", além de tentar "alargar o máximo possível a nossa base de apoio parlamentar à direita, à esquerda e entre ecologistas".

A primeira-ministra da França, Elisabeth Borne, ao deixar o Palácio do Eliseo, em Paris, nesta quarta (22) - Ludovic Marin/AFP

Questionado se a reforma da Previdência será implementada em setembro, como previsto pela proposta de lei, foi cauteloso. Disse que quer que ela seja instituída até o final do ano, mas afirmou que "o texto agora está no Conselho Constitucional, que vai se pronunciar a respeito da reforma, e vamos respeitar sua decisão".

Macron expressou o desejo de "que uma vida o mais normal possível possa ser retomada na França", ao comentar sobre os bloqueios protagonizados por manifestantes em várias partes do país. "Cabe a mim tentar ouvir a raiva legítima, que, mais uma vez, não é violência, e que foi expressa ao longo dessas contestações", afirmou.

A junta intersindical responsável por organizar greves e protestos, que já reuniram milhares de franceses desde janeiro, convocou uma nova jornada de manifestações para a quinta-feira (23) em todo o país.

O recente recrudescimento na repressão a manifestantes fez a Anistia Internacional emitir uma nota de alerta às autoridades francesas. "Lembramos que as autoridades devem respeitar o direito de manifestação e garantir a segurança dos manifestantes, impedindo o uso de força excessiva."

As declarações de Macron durante a entrevista transmitida ao vivo provocaram reação imediata das lideranças políticas e sindicais.

Jean-Luc Melenchon, líder do ultraesquerdista França Insubmissa, disse que Macron é "arrogante" e "vive fora da realidade". Olivier Faure, do Partido Socialista, declarou que o presidente apresenta os franceses "como preguiçosos viciados em ajuda pública", "desqualifica os sindicatos" e "insulta a história ao negar legitimidade à expressão popular".

Marine Le Pen, do ultradireitista Reunião Nacional, avaliou que Macron está cada vez mais isolado politicamente e que sua entrevista "desafia simbolicamente a França que trabalha". "Ele diz que respeita, mas insulta [os franceses]."

"O presidente trata das coisas como se tudo estivesse bem e ignora as ruas. É grave", disse Phillippe Martinez, líder da Confederação Geral do Trabalho, uma das maiores centrais sindicais da França

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