Autoridades chinesas combatem tradição de cobrar preço por noivas

Prática semelhante ao pagamento de dotes vira alvo de políticas públicas para frear declínio demográfico

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Nicole Hong Zixu Wang
The New York Times

As 30 mulheres estavam sentadas em cadeiras de madeira, de frente umas para as outras, em formação retangular. Na frente da sala via-se o logotipo de martelo e foice do Partido Comunista Chinês e um cartaz declarando a finalidade do encontro: "Simpósio de mulheres jovens solteiras de idade apropriada".

As autoridades de Daijiapu, no sudeste da China, reuniram as mulheres para firmar um compromisso público de rejeição aos "preços de noiva" elevados –um costume tradicional pelo qual o homem dá dinheiro à família de sua futura esposa como precondição para o noivado.

Ao descrever o evento numa nota em seu site no início deste ano, a administração local defendeu que as pessoas abandonem essas práticas atrasadas e façam sua parte para "lançar uma tendência nova e civilizada".

Cerimônia de casamento em Nanchang, na China, coletiva encoraja famílias a manter prática de pagar preço por noivas - Qilai Shen - 8.mar.23/The New York Times

A população chinesa vem encolhendo e, para incentivar a realização de mais casamentos, cujos números têm caído, autoridades têm procurado reprimir a tradição de entrega de presentes de noivado.

Conhecidos em mandarim como "caili", os pagamentos feitos à família da noiva são cada vez maiores nos últimos anos. Chegam a US$ 20 mil (R$ 103 mil) em algumas províncias e, assim, o casamento acaba se tornando cada vez mais fora do alcance de muitas famílias. Esses valores normalmente são pagos pelos pais do noivo à família da noiva.

Para coibir a prática, autoridades locais estão lançando campanhas de propaganda como o evento promovido em Daijiapu, orientando mulheres solteiras a não competir entre elas para exigir valores mais altos. Em algumas cidades, autoridades locais impuseram um teto ao "caili" e chegam a intervir diretamente nas negociações particulares entre famílias.

Acompanhando a mudança de atitudes dos chineses, a tradição do pagamento do preço da noiva enfrenta resistência crescente. Muitos chineses de nível de instrução mais alto, especialmente nas cidades, tendem a enxergar esse costume como uma relíquia patriarcal que trata mulheres como bens que são vendidos a outra família. Nas áreas rurais onde a prática é mais comum, ela tem sido rejeitada por camponeses mais pobres, forçados a economizar durante anos ou a contrair dívidas para se casarem.

Mesmo assim, a campanha do regime vem atraindo críticas por reforçar os estereótipos sexistas sobre as mulheres. Quando tratam do problema da alta dos preços de casamento, veículos de mídia chineses muitas vezes caracterizam as mulheres que pedem valores altos como gananciosas.

Quando o evento em Daijiapu viralizou nas redes sociais, uma enxurrada de comentários questionou por que o ônus de resolver o problema fica a cargo das mulheres. Alguns pediram que as autoridades convoquem encontros semelhantes para homens, para ensiná-los a serem parceiros mais equitativos no casamento.

Gonçalo Santos, professor de antropologia na Universidade de Coimbra, em Portugal, que estuda a China rural, comenta que "mulheres são o alvo principal da maioria das políticas públicas ligadas ao casamento. É um apelo paternalista lançado a elas para manter ordem e harmonia social e cumprir seus papéis de esposas e mães."

As autoridades admitem que seu poder de eliminar um costume que muitas famílias enxergam como indicador de status social é limitado. Segundo pesquisadores, nas áreas rurais, os vizinhos podem fofocar sobre as mulheres que cobram preços baixos, questionando se há algo de errado com elas.

A tradição do "caili" também está relacionada a atitudes arraigadas sobre o papel de cuidadora exercido pela mulher na família. Para os pesquisadores, em partes da China rural, o pagamento ainda é visto como o preço pago para comprar o trabalho e a fertilidade da noiva. Uma vez casada, espera-se que a mulher vá viver com a família de seu marido, engravide e passe a ser responsável pelas tarefas domésticas, criação dos filhos e por cuidar de seus sogros.

Mas a alta do custo de vida expôs lacunas do sistema de seguridade social chinês. Conseguir um preço alto por uma noiva pode ser uma maneira de famílias de renda baixa que têm filhas acumular economias para cobrir despesas médicas ou outras emergências. E, com os pais tendo vida mais longa, algumas mulheres vêm exigindo pagamentos mais altos como reembolso por serem as cuidadoras principais da geração mais velha.

Sociólogos dizem que uma maneira mais eficaz de o regime combater a tradição do "caili" seria aumentar as verbas para creches e atendimento médico para idosos.

Com mais chineses jovens adiando o casamento ou mesmo evitando-o por completo, as expectativas dos pais em relação aos pagamentos por casamento vêm mudando, diz Liu Guoying, 58. Ela é promotora de casamentos em Nanchang, a capital da província de Jiangxi, notória por preços de noiva que podem passar de US$ 50 mil (R$ 256,8 mil).

Segundo ela, cada vez mais pais ansiosos por facilitar a vida de seus filhos vêm entregando o pagamento aos recém-casados como presente. Alguns pais querem tanto ver suas filhas casadas que se dispõem a aceitar menos dinheiro, desde que os futuros genros tratem suas filhas bem.

Uma nova geração de mulheres, mais instruídas que seus pais, também pode estar contribuindo para modificar as atitudes em torno do "caili". Uma pesquisa de 2020 feita com 2.000 pessoas na China revelou que os casais com alto nível de instrução são menos propensos a pagar "preços de noiva", considerando que o amor de um pelo outro é o bastante.

Mas mesmo para mulheres como Luki Chan, 27, que fez faculdade —uma oportunidade que sua mãe nunca teve—, pode ser difícil escapar da pressão das tradições.

Chan cresceu numa região montanhosa da província de Fujian, no sudeste da China, onde os pagamentos de casamento costumam ser elevados. Sua mãe espera receber pelo menos US$ 14 mil (R$ 71,9 mil) do noivo quando Chan se casar, a título de reembolso pelo que ela gastou com os estudos da filha.

Agora Chan está construindo sua própria carreira em Xangai como produtora de teatro e está no processo de cuidar da documentação para casar-se com seu namorado, taiwanês. Ela receia que quando seus pais descobrirem, sua exigência de preço de noiva acabará prevalecendo. A própria Chan rejeita a tradição –para ela, é como ser vendida.

"Quando vejo o sistema patriarcal que explora as mulheres e penso nas tradições conjugais misóginas, tenho muito medo de falar de casamento com minha família", refletiu.

Tradução de Clara Allain 

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