É um erro colocar a pauta identitária como central para a esquerda, diz Rafael Correa

Ex-presidente do Equador critica ênfase em temas como aborto e direitos LGBTQIA+ por desviarem foco da desigualdade

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São Paulo

O ex-presidente do Equador Rafael Correa, 59, critica a nova ênfase da esquerda latino-americana em temas identitários e morais por considerar que geram divisões e desviam o foco do que é fundamental, a discussão sobre pobreza e desigualdade.

"Nem sequer resolvemos os problemas do século 18, as grandes contradições, a pobreza generalizada, a desigualdade, a exploração. E nos metemos a tentar resolver e ser vanguarda do mundo de problemas de última geração. Alguns estão na fronteira da questão moral, são polêmicos", afirma à Folha durante passagem por São Paulo.

Entrevista com ex-presidente do Equador Rafael Correa, em São Paulo - Danilo Verpa/Folhapress

Embora identificado com a esquerda, ele admite ter posições conservadoras em temas como aborto, casamento entre pessoas LGBTQIA+ e identidade de gênero. "Se ser progressista é assinar esse checklist, não sou progressista", afirma.

Presidente do Equador de 2007 a 2017, Correa veio ao Brasil a convite do PSOL e de movimentos sociais. Ele vive na Bélgica, país de sua mulher, e tem uma condenação por corrupção, em sua terra natal, que atribui à perseguição política.

À distância, comanda a oposição ao presidente de centro-direita, Guillermo Lasso, alvo de pedidos de impeachment. Para Correa, a atual "onda rosa" de governos de esquerda no continente é mais heterogênea e frágil que a anterior, que o teve como um dos protagonistas.

O sr. acredita que o impeachment do presidente do Equador, Guillermo Lasso, vai ser aprovado? O julgamento político tem que ser feito pela Corte Constitucional. Há provas contundentes de corrupção, narcotráfico, ocultação de informações pelo presidente.

Existe um debate se Lasso pode antecipar eleições para escapar de um julgamento político. Ele diz que sim. Que o faça. Para nós, seria a melhor solução. Vai ser arrasado, mesmo que tenha seis meses para governar por decreto e tentar fazer muitas coisas.

O sr. se coloca como vítima de lawfare [perseguição judicial], como Lula no Brasil. Tem esperança de conseguir reverter a condenação e voltar a se candidatar, como ocorreu com ele? Isso não é importante, o importante é resgatar o país da tragédia que ocorreu. Destruíram tudo. Tínhamos as melhores estradas da América Latina, hoje não se pode transitar. Deixamos o país como o segundo mais seguro da América Latina, 5,6 assassinatos por 100 mil habitantes. Em 2020, eram 24, viramos um dos países mais violentos da região. Acho que mais cedo do que tarde essa barbaridade [sua condenação] vai ser derrubada. Os corruptos sempre foram eles. Jamais encontraram um centavo desviado, somos pessoas de mãos limpas.

Como o sr. vê a nova onda rosa de governos de esquerda na América Latina e como compara com a primeira, da qual o sr. foi protagonista? Ela não é independente da primeira. Tivemos uma forte reação conservadora a partir de 2014, que, por meios democráticos ou não, levou a direita ao poder. Quiseram convencer as pessoas de que tudo estava mal. Pode-se enganar as pessoas durante um ou dois anos, mas não por quatro ou cinco.

E aí chega essa segunda onda rosa. Essa é muito mais extensa, mas menos profunda. Nunca as cinco maiores economias da América Latina foram de esquerda: Brasil, México, Colômbia, Argentina e Chile. Isso é inédito. Mas é uma onda muito mais heterogênea. Temos Gabriel Boric [presidente do Chile], que é pouco menos do que um social-democrata e, de repente, vira inimigo da Venezuela, não vê que está bloqueada, tem uma economia de guerra, não pode ser julgada pelos parâmetros normais.

Vejo muito mais fragilidade nos governos de esquerda agora. Eram governos com muito apoio popular e maioria no Congresso, agora menos, tendo que fazer coalizões. E a oposição também tem mais experiência.

Como analisa esse novo governo Lula? Lula sempre fez um governo de coalizão. No entanto, também enfrenta adversários com mais experiência e dispostos a tudo, como já demonstraram. É difícil governar nessas condições ou ao menos fazer as coisas que desejaria fazer. Lula é um dos mais brilhantes estadistas da história da América Latina. Mas obviamente tem um caminho muito tortuoso.

Como vê a situação da Venezuela e qual a saída da crise? Essa é uma questão que deve ser solucionada pelos venezuelanos. O que é inadmissível são sanções unilaterais contra o país, dos EUA e da Europa. A Venezuela não pode vender o seu petróleo, que era 95% das divisas do país.

E há a questão da repressão política por parte do regime, não? Com prisão de opositores. Houve 44 mortos por incitação. Houve protestos violentos. Alguém tem de ser responsabilizado quando há mortes. E como são políticos, dizem que são perseguidos políticos. Eu não compartilho disso. Vejam o que a Europa acabou de fazer. Por causa da guerra de Rússia e Ucrânia, proibiram meios de comunicação russos. Não acha que na situação em que está a Venezuela, têm que tomar medidas extraordinárias?

É a mesma situação da Nicarágua? Sou parte do Grupo de Puebla, um espaço para lideranças progressistas. Acabamos de divulgar um manifesto rechaçando o que ocorreu com 200 opositores nicaraguenses, que perderam a cidadania. Entre eles, Sérgio Ramirez, que foi vice-presidente, é um intelectual. Não estamos de acordo com isso, nos manifestamos claramente.

A Nicarágua virou uma ditadura? [Daniel] Ortega ganhou as eleições. Opositores não puderam participar, o que nos deixou inquietos, mas ele teria ganho mesmo se tivessem participado. É inegável que ganhou a eleição legitimamente, então não podemos chamar isso de uma ditadura.

Que impacto o retorno de Donald Trump teria para a América Latina? Pessoalmente há diferenças entre Trump e [Joe] Biden. Trump é um imbecil, Biden não.

Porém não houve mudança na política externa, que é independente dos governos. Trump aumentou muito as sanções contra a Venezuela, mas Biden não as revogou. Um tipo tão primário e incompetente como Trump é um perigo para o mundo, não apenas para a América Latina. Mas no nível de políticas, não há mudanças substanciais. Democratas e republicanos são diferentes numa questão de grau, não de substância.

O que acha da experiência do presidente Nayib Bukele em El Salvador para combater a criminalidade, baseada em repressão? É um modelo para o Equador? De maneira alguma. No Equador, reduzimos a criminalidade não apenas com prisões, que são necessárias, mas sobretudo com desenvolvimento humano. Entendo em parte, a situação era insustentável em El Salvador. Em algumas situações é preciso esticar um pouco a institucionalidade.

Mas os limites que não se podem passar são os direitos humanos. E Bukele passou. Dizem que 10% dos 50 mil presos são inocentes. Estamos falando de 5.000 pessoas. Agora todos o aplaudem. Talvez eu esteja errado, mas anote: creio que Bukele vai ser o [ex-ditador peruano Alberto] Fujimori do futuro.

Bukele, então, é um fenômeno artificial? Ele é um showman. Tem grandes virtudes, mas poderia aproveitar de melhor maneira.

A esquerda tem abraçado novos temas, pautas identitárias. O que pensa disso? É um erro colocar isso como central em nossa agenda. Sim, são problemas, têm que ser tratados com muito respeito. Mas nem sequer resolvemos os problemas do século 18, as grandes contradições, a pobreza generalizada, a desigualdade, a exploração. E nos metemos a tentar resolver e ser vanguarda do mundo de problemas de última geração. Alguns estão na fronteira da questão moral, são polêmicos. Se ser progressista é assinar esse checklist, não sou progressista. Ficamos discutindo isso, e o que, sim, gera consenso na esquerda, a pobreza, a desigualdade, deixamos de tratar.

Creio, inclusive, que é uma estratégia do norte, da direita, colocar para nós estes temas conflituosos para nos distrair do essencial: que estamos no continente mais desigual do planeta. E hoje ficamos brigando sobre casamento gay, aborto em qualquer momento.

No plano pessoal, tenho o que chamam de posições conservadoras. O que me incomoda é que isso defina o que é ser de esquerda. Se Che Guevara estivesse contra o aborto sendo médico, não seria mais de esquerda? Se [Augusto] Pinochet estivesse a favor de aborto e casamento gay, não seria de direita?

Como, então, o sr. definiria a esquerda? Você pode definir esquerda como justiça. É preciso haver justiça de gênero, por exemplo. Não se pode permitir que no mesmo trabalho a mulher ganhe menos ou que tenha que ficar em casa para o homem trabalhar, cuidar dos filhos, e o homem não. Isso é justiça. Mas vêm as feministas e dizem que justiça é poder abortar quando a mulher quiser. Aí vem a polêmica.

Pessoalmente, como o sr. se coloca sobre esses temas morais? Sou opositor por consciência do aborto. Eu disse aos gays: existe a união de fato, com todos os benefícios de um matrimônio. Mas um matrimônio em princípio, por tradição em nossa sociedade, como parte da cultura, é uma união do homem e da mulher, e eu também sigo considerando isso como correto. Você vai escrever isso e vai ver o monte de gente que vou decepcionar, vão dizer: "Correa não é de esquerda".

Essa ideia de gênero, que um garoto de 12 anos se sente mulher, é uma loucura terrível. Sempre se deve respeitar. O que não se pode dizer é: "Você se sente mulher, então comece a se vestir como mulher". Pelo amor de Deus. Pode ser que alguma criança psicologicamente esteja preparada para ter outro sexo, pode ser uma exceção. Mas que não seja regra que um menino de 12 anos se sente mulher e temos que aceitar.

A grande maioria da esquerda global tem uma posição diferente da sua. Se isso é ser de esquerda, não sou de esquerda. O que vou fazer? Fico com meus princípios, com minhas visões e com o que tenho certeza de ser correto.

Como o sr. vê as organizações internacionais de esquerda hoje em dia, como o Grupo de Puebla e o Foro de São Paulo? Têm uma grande importância. O Grupo de Puebla é um espaço que faltava. Não tínhamos coordenação entre dirigentes progressistas. O Foro de São Paulo foi criado em 1990, creio que tem algumas contradições. Lá está o Pachakutik [partido indígena equatoriano], que apoia Lasso. Creio que está um pouco superado.


Raio-x | Rafael Correa, 59

Presidente do Equador de 2007 a 2017, foi também ministro da Economia (2005), professor de economia na Universidade São Francisco de Quito e diretor do Ministério da Educação. É graduado em economia pela Universidade Católica de Louvain (Bélgica), com mestrado e doutorado pela Universidade de Illinois (EUA). Escreveu três livros sobre o cenário econômico do Equador.

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