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Moderação de conteúdo nas redes é um esforço inútil, diz Nobel da Paz Maria Ressa

Jornalista das Filipinas fala sobre seu livro 'Como Enfrentar Um Ditador' e narra processo de desilusão com Facebook

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São Paulo

Às vezes —muitas vezes— é preciso bancar o Mr. Spock, diz Maria Ressa, jornalista filipino-americana ganhadora do Nobel da Paz em 2021 e cofundadora do nativo digital Rappler.

A referência ao personagem de Star Trek conhecido pela racionalidade veio primeiro para representar como Ressa, que ajudou a estruturar a rede CNN no Sudeste Asiático na década de 1990, lidava com a pressão da cobertura jornalística. Depois, virou metáfora para a vida pessoal.

Maria Ressa durante entrevista na Redação do Rappler, em Manila, capital das Filipinas
Maria Ressa durante entrevista na Redação do Rappler, em Manila, capital das Filipinas - Jam Sta Rosa - 12.jul.22/AFP

Ela e o Rappler, afinal, foram alvos de uma perseguição judicial capitaneada pelo governo do ex-presidente filipino Rodrigo Duterte devido à cobertura que fizeram sobre sua política de guerra às drogas e de uso das redes sociais para proliferar desinformação.

"Breaking news [as notícias quentes] não estão sob meu controle, e é preciso tomar a melhor decisão na quantidade de tempo disponível. Foi assim que fui treinando e aprendi. Mas então, quando fui escrever durante a pandemia sobre isso, percebi o quão exausta eu estava."

Ressa escreveu durante o confinamento o prólogo de seu livro "Como Enfrentar Um Ditador", publicado em dezembro pela Companhia das Letras. O título, que pode dar a ideia de uma espécie de manual para lidar com um mundo em autocratização, não dá conta de expressar a espécie de biografia que o leitor encontra já nas páginas iniciais. Ou, como ela diz em conversa com a Folha, uma "ode ao jornalismo".

A jornalista conta no material sobre sua saída abrupta de Manila, ainda na infância, rumo aos EUA, sobre sua sexualidade, um dos fatores que lhe renderam ataques virtuais, e sobre a decisão de voltar às Filipinas na época de redemocratização do país, no final dos anos 1980.

Nos EUA, por vezes se sentiu uma "outsider" —alguém de fora. Questionada se a saga que enfrentou contra Duterte a fez se sentir semelhante em Manila, ou então perder o amor por seu país, diz que não. "Meus valores, assim como os do Rappler, são filipinos."

"Mas sim, definitivamente tive outros sentimentos. Comecei a entender exatamente como Marcos [Ferdinand Marcos, ex-ditador filipino cujo filho hoje é presidente do país] foi hábil para permanecer no poder por mais de 21 anos. Isso requer medo na população."

Ressa fala ainda sobre grandes desafios de sua carreira, que vão da cobertura sobre a onda de violência que assolou a Indonésia após a queda do ditador Suharto ao sequestro de membros de sua equipe por uma ramificação local da Al Qaeda —todos saíram vivos do episódio.

Mas seu livro, de maneira inevitável, faz um mergulho nas redes sociais, um tema que Ressa acompanha de perto há mais de uma década. Fundado em 2012, o Rappler surfou no auge do Facebook nas Filipinas, um dos países mais conectados do mundo. Mas ela e sua equipe não demoraram a compreender que, ao mesmo tempo em que podem ser boas, as redes sociais podem corroer uma democracia.

"Estamos numa trincheira, distribuindo notícias em um ecossistema de informações que recompensa mentiras e ódio", afirma Ressa. "As notícias, os fatos, não têm chance nessas plataformas de distribuição."

Por meio do trabalho no Rappler, ela acompanhou como grupos, muitas vezes de adolescentes, eram contratados por campanhas políticas para promover informações falsas nas redes em busca de apoio para a violência desenfreada da guerra às drogas de Duterte nas chamadas fazendas de cliques. Ou, então, para maquiar o passado da família do hoje presidente Bongbong Marcos.

Por denunciar essas práticas, ela e seu jornal foram alvos de 14 acusações, entre elas difamação cibernética e evasão fiscal. Mais de dez mandados de prisão foram expedidos contra ela. Ressa chegou a ser presa, e o Rappler, a ter sua licença de funcionamento revogada.

Em ataques coordenados nas redes, apoiadores pagos por Duterte tentaram descredibilizar a jornalista. Disseram, entre outras coisas, que ela era indonésia, comunista e membro da CIA, a agência de inteligência americana. "O que sigo me perguntando é como você pode, ao mesmo tempo, ser comunista e membro da CIA [risos]."

Ressa relata ter feito alertas ao Facebook já em 2016. Diversas vezes. Mas também afirma ter sido pouco ou nada ouvida. Hoje, ela é uma das principais defensoras da regulamentação das plataformas, um movimento que ganha tração em países como o Brasil.

"O modelo das companhias de mídia social recompensa o populismo, a promoção do medo, da raiva, do ódio e do tribalismo. Isso é corrosivo para a sociedade", diz Ressa, que critica em seu livro o que chama de "truculência da mentalidade de rebanho" promovida nas redes.

Diante do desafio de como fazer uma boa regulação, ela afirma que apenas a moderação do conteúdo nas redes é insuficiente –e usa a metáfora: é como purificar apenas um copo d'água em meio a todo um rio que está cheio de veneno. "O que precisamos e legislação certa para impedir a manipulação insidiosa."

Ela critica em especial o algoritmo "friends of friends" (amigos dos amigos), que sugere ao usuário conteúdos semelhantes aos de suas conexões. "É aí que a polarização começa. Isso divide a sociedade, a radicaliza."

A prática ganhou tração em 2018, quando o Facebook passou a privilegiar conteúdos de interação pessoal, em detrimento dos distribuídos por empresas, como as de jornalismo.

Foi quando, por exemplo, esta Folha deixou de publicar seus conteúdos na plataforma —mas retornou posteriormente, em 2021, após a empresa de Mark Zuckerberg rever, em partes, suas práticas.

Ressa diz ver nas láureas concedidas pelo Nobel da Paz em 2021 —quando foi a escolhida ao lado do russo Dmitri Muratov— e em 2022, quando foram premiados agentes da sociedade civil, um recado sobre "atores fundamentais para redefinir o engajamento cívico na era das mentiras exponenciais."

"O Brasil é um exemplo perfeito de como, apesar do modelo do YouTube e de outras mídias sociais, a sociedade civil ajudou a democracia a vencer", diz, referindo-se à derrota de Jair Bolsonaro nas urnas.

Não à toa, as premiações do Nobel reconheceram figuras da Rússia e de porções da Ásia, regiões nas quais o autoritarismo tem se espraiado de maneira mais ágil do que em qualquer outra parte do mundo.

Ressa menciona, por exemplo, recente relatório do instituto sueco V-Dem, referência global na análise de regimes políticos, segundo o qual o mundo retrocedeu a níveis democráticos observados em 1986. Para a região da Ásia-Pacífico, a terra natal da Nobel da Paz, porém, o problema é maior: o retrocesso remonta a níveis de 1978 —45 anos.

No livro, ela também fala de religião —foi criada sob o catolicismo ao lado da avó quando criança. Hoje, não tem ligações com a igreja, mas diz manter sua fé. "Acredito na bondade e acredito que as pessoas são boas. É preciso ter fé de que alguém vai estar lá por você, e que você também estará presente para outra pessoa. Como jornalistas, evitamos nos apegar a isso, mas isso faz parte da natureza humana, certo?"

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