Kissinger chegou aos 100 com fama dividida entre gênio e criminoso de guerra, mas sempre influente

Diplomata que redefiniu o século 20, morto nesta quarta, soube negociar com China e URSS

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Washington

Há quase meio século fora do poder, Henry Kissinger, ex-secretário de Estado dos EUA completou 100 anos em maio ainda provocando debate: afinal, gênio da diplomacia ou criminoso de guerra?

Para o historiador Luke Nichter, professor da Universidade Chapman e especialista no governo Richard Nixon (1969-1974), "não é preciso escolher um lado; ele pode ser herói e vilão ao mesmo tempo." O que faz de Kissinger influente até hoje é que foi, "goste-se ou não, o secretário de Estado mais relevante da história moderna dos Estados Unidos, alguém que ajudou a criar o mundo em que vivemos hoje".

Henry Kissinger (à esq.), dá a Gerald Ford, então presidente dos EUA, informações sobre a situação americana na Guerra do Vietnã, em 1975
Henry Kissinger (à esq.), dá a Gerald Ford, então presidente dos EUA, informações sobre a Guerra do Vietnã, em 1975 - David Hume Kennerly - 29.abr.75/Cortesia Biblioteca Gerald R. Ford/Reuters

Nascido em 1923 na Alemanha como Heinz Alfred Kissinger, mudou-se para os Estados Unidos aos 15 com a família, judia, fugindo do nazismo —até a morte, manteve marcado sotaque alemão.

Em 1969, com a chegada de Nixon ao poder, foi nomeado conselheiro de Segurança Nacional, assessor máximo do presidente para assuntos de política externa, depois de construir boa reputação como professor em Harvard e trabalhar como consultor em diferentes agências do governo americano.

São dessa época seus principais feitos e controvérsias. Ele é considerado um dos artífices de um período de redução de tensões com a União Soviética, em plena Guerra Fria. No mesmo ano em que assumiu, por exemplo, ajudou a formular as Conversas sobre Limites para Armas Estratégicas (Salt, na sigla em inglês), conferências e tratados entre as duas potências dominantes para acalmar os ânimos.

O maior crédito dado a Kissinger no período de oito anos em que comandou a política externa americana entre conselheiro de Segurança Nacional e secretário de Estado (a partir de 1973) é a reabertura da China após duas décadas de isolamento que se seguiram à revolução comunista de 1949. Kissinger visitou o país de modo secreto em 1971 e, no ano seguinte, reuniu Nixon, conhecido anticomunista, com Mao Tse-Tung e Zhou Enlai —à época o líder chinês e seu primeiro-ministro— dando o pontapé para que o país viesse a se transformar na superpotência que é hoje.

Mas as controvérsias que, para alguns analistas, dão-lhe o título de criminoso de guerra não são menores que os feitos. Ele autorizou bombardeios americanos ao Camboja, no contexto da Guerra do Vietnã, entre 1969 e 1973, que deixaram 150 mil civis mortos, segundo estimativas mais conservadoras.

Sob sua bênção, a CIA de Nixon auxiliou militares chilenos a desestabilizarem o governo de Salvador Allende desde a posse, em 1970. O golpe de fato, três anos depois, pelas forças de Augusto Pinochet, deu início a uma das ditaduras mais sangrentas da América Latina. No continente, Kissinger também apoiou o golpe de 1976 na Argentina, bem como a Operação Condor, que criou uma rede para operações coordenadas de repressão nas ditaduras do Cone Sul, que incluíam ainda Brasil, Bolívia, Paraguai e Uruguai.

Mesmo assim, Kissinger recebeu um Nobel da Paz em 1973 pelas negociações pelo fim da Guerra do Vietnã junto ao vietnamita Le Duc Tho. A láurea, porém, foi considerada uma das mais questionadas da história da premiação, provocou renúncias na comissão avaliadora, e Tho recusou a medalha.

A mão forte de Kissinger ainda aparece em outras partes do mundo, do sul da África ao Timor Leste, passando pelo Oriente Médio, mas, para o historiador David Greenberg, "ele foi extremamente superestimado como diplomata por seus admiradores e detratores".

Professor da Universidade Rutgers e autor de livro sobre a Presidência de Nixon, Greenberg defende que foi Nixon, não Kissinger, o autor das políticas de distensionamento na Guerra Fria e de abertura da China. "Kissinger as executou, mas não as concebeu."

Do outro lado, Greenberg reconhece os erros apontados pelos detratores do diplomata, como o apoio a Pinochet e a extensão da Guerra do Vietnã. "Mas ele não era um ‘criminoso de guerra’. Esse termo deveria ser reservado para autores de atos bárbaros como Bashar al-Assad [ditador da Síria], Slobodan Milosevic [líder sérvio] ou Vladimir Putin. O que Kissinger fez estava dentro das normas do que qualquer conselheiro de política externa poderia fazer –está sujeito a críticas severas, mas não a processos criminais."

Poderoso, Kissinger sobreviveu ao Watergate e permaneceu no cargo de Secretário de Estado no governo do sucessor Gerald Ford, até a derrota dos republicanos na eleição de 1976. Não perdeu a influência, no entanto. Visitou e aconselhou todos os presidentes dos EUA desde então, com exceção do atual, Joe Biden, e permanece aclamado nos círculos de poder não só em Washington, mas também no exterior.

Em entrevista à rede americana CBS em maio, questionado pelo repórter sobre o que aconteceria se sua secretária telefonasse a Xi Jinping ou a Putin de supetão, ele respondeu que "há uma boa chance" de que os líderes chinês e russo atendam à ligação.

Suas visões pragmáticas continuam a ressoar. No ano passado, quando a Rússia invadiu a Ucrânia, viralizou na internet um texto que ele escreveu em 2014 para o Washington Post, à época da anexação da Crimeia, em que argumentava que a Ucrânia não deveria ingressar na Otan.

Após mais de um ano de guerra, ele disse que Putin cometeu "um erro de julgamento catastrófico" ao invadir o país vizinho, mas não isenta o Ocidente de culpa, porque, para ele, "abrir a possibilidade de adesão à Otan foi muito equivocada", disse em entrevista publicada pela The Economist.

"Nós armamos a Ucrânia a ponto de transformá-la no país mais bem armado na Europa e com a liderança estrategicamente menos experiente", criticou.

Kissinger se concentrou nos últimos tempos na disputa entre China e EUA, países que ele disse ter sempre acreditado que poderiam coexistir sem uma ameaça de guerra. "Ainda acho que podem, mas o fracasso é possível, e portanto devemos ser militarmente fortes", disse à revista britânica.

Para ele, os EUA não poderiam trabalhar pela mudança de regime em Pequim porque, embora uma China democrática seja desejável, um colapso comunista poderia levar a uma guerra civil que geraria instabilidade global. "Não é de nosso interesse levar a China à dissolução", afirmou.

Cego de um olho, com a voz rouca e baixa e acumulando uma série de cirurgias cardíacas, tem estudado os efeitos da inteligência artificial na ordem global, fenômeno que ele compara à capacidade de disrupção que a invenção da imprensa teve no século 15 —ele afirmou que a IA vai exacerbar a competição entre EUA e China.

Fatos da vida de Henry Kissinger

1923: Nasce Heinz Alfred Kissinger em Fürth, na Alemanha

1938: Fugindo do nazismo, muda-se aos 15 com a família, judia, para os EUA, onde adota o nome Henry

1943: Recebe cidadania americana e serve no Exército como intérprete de alemão

1954 - 1969: Professor e diretor de centro de pesquisa na Universidade Harvard, onde havia feito graduação, mestrado e doutorado

1956 - 1968: Consultor em diferentes agências do governo, primeiro no Departamento de Defesa, depois no Conselho de Segurança Nacional, na Agência de Controle de Armas e Desarmamento e por fim no Departamento de Estado

1969: Assume como Conselheiro de Segurança Nacional do presidente Richard Nixon (republicano). Participa da organização das Conversas sobre Limites para Armas Estratégicas, conferências e tratados entre EUA e União Soviética para reduzir as tensões na Guerra Fria

1969 - 1973: Defende bombardeios no Camboja, em extensão à Guerra do Vietnã; estimativas mais conservadoras falam em pelo menos 150 mil civis mortos

1970: Com o apoio de Kissinger, a CIA sob Nixon auxilia militares no Chile a desestabilizar o regime Salvador Allende desde a posse até o golpe de 1973. Também apoiou o golpe de 1976 na Argentina, quando uma junta militar derrubou a presidente Isabel Perón

1971: Visita a China secretamente para abrir caminho a visita histórica de Nixon no ano seguinte, em esforço para afastar o país comunista da União Soviética

1972: Volta à China e reúne Nixon, Mao Tsé-Tung e Zhou Enlai, em viagem que marca abertura do país asiático para o mundo

1973: Torna-se Secretário de Estado. Recebe o Nobel da Paz pelas negociações pelo fim da Guerra do Vietnã junto do vietnamita Le Duc Tho, que recusa o prêmio

1974: Nixon renuncia, sob pressão do escândalo de Watergate, mas Kissinger permanece no governo sob o presidente Gerald Ford

1977: Deixa o cargo de Secretário de Estado com a vitória do democrata Jimmy Carter

1982: Abre sua bem sucedida empresa de consultoria

2002: Indicado por George W. Bush para liderar a comissão que investigou o 11 de Setembro, renuncia ao posto um mês depois alegando conflito de interesses com clientes de sua empresa de consultoria.

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