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09/09/2011 - 07h55

Tortura é para sempre, diz canadense preso após 11/9

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LUCIANA COELHO
DE WASHINGTON

Maher Arar foi preso em 26 de setembro de 2002 no aeroporto JFK, em Nova York, ao fazer uma escala na volta das férias. Aos 32, casado, com dois filhos, o engenheiro canadense nascido na Síria seria interrogado por um suposto laço com a Al Qaeda.

Era o início da "Guerra ao Terror". Acorrentado, posto em um avião e levado à Síria, sua rotina nos doze meses seguintes alternariam a solitária e a tortura. Nunca houve acusação formal.

Solto após o governo canadense intervir, provou-se inocente. Esta é a história que o assombra desde então.

Leia a íntegra do depoimento:

*

A maior parte dos flashbacks que eu tenho do ano que passei na Síria é com os sons das mulheres na cela ao lado e o choro do bebê que estava lá com a mãe. Mesmo aqui, toda a vez que ouço um bebê chorar, eu me lembro desses bebês.

Estar em uma cela ao lado de um bebê, trazido para a prisão com sua mãe, era uma tortura em si. Havia vezes em que as mães gritavam para pedir leite, e eram xingadas.

Chris Wattie/Reuters - 5.jul2004
Imagem mostra Maher Arar durante inquérito em Ottawa em 2004; sírio-canadense foi torturado na Síria após 11 de setembro de 2001
Imagem mostra Maher Arar durante inquérito em Ottawa em 2004; sírio-canadense foi torturado na Síria após 11 de setembro de 2001

A outra coisa que não se apaga da minha memória é a reação das pessoas enquanto eram torturadas. Mesmo estando no porão, quando a tortura era intensa, dava para ouvir. Algumas vezes nos levavam para a parte de cima, para a sala de interrogatório, e enquanto você esperava sua vez, ouvi os outros sendo torturados.

É engraçado você perguntar isso, porque as pessoas sempre perguntam sobre a minha tortura, e, é claro que eu lembro dela, mas eu não estava sozinho.

E toda vez que eu falo com alguém que esteve na mesma situação, eles se lembram da tortura alheia. É uma forma de tortura em si.

Sabe, a minha única memória viva da minha tortura é de quando ela começava. O interrogador entrava na sala, sem dizer palavra. Fazia um sinal para que eu abrisse a palma de uma das mãos, me batia com um cabo, depois repetia com a outra.

Quando você está sozinho na cela você tem todo o tempo do mundo para prestar atenção no que está acontecendo ao lado.

Minha mulher e eu temos tentado evitar esse assunto com as crianças. Agora, porém, meus filhos já têm idade para fazer pergunta.

A coisa que mais me chama a atenção é meu filho, que tem nove anos agora, e ainda tem muito medo de quando eu saio de casa.

Se eu saio no início da noite, ele sempre pergunta, "aonde você está indo? aonde?". Ele tem medo que eu não volte, é a reação dele. Sempre quer saber aonde vou e que horas volto. Minha filha lida um pouco melhor, não sei por quê. Acho que é a idade. Ela tinha seis anos quando isso aconteceu, meu filho tinha alguns meses. Ele ainda me pergunta como é a prisão, o que acontecia.

Algumas vezes eu vejo os comentários que as pessoas fazem sobre a minha história na internet, e tem gente que diz coisas como "quisera eu ter sido enviado para a Síria por um ano e receber milhões em indenização".

Tem gente que diz que foi "só um ano". As pessoas não percebem que é um negócio que durará sua vida toda. Porque a marca da tortura física muitas vezes passa. Mas a psicológica perdura. Isso me surpreendeu. Eu não sei quando vai acabar.

E o estrago que faz na sua reputação, é algo com que você convive todos os dias. Mesmo quando as coisas não têm base em fatos. Psicologicamente, você está arruinado, você sempre vai tentar ver o mundo dessa prisão que é ter sido acusado de.

As pessoas às vezes acham que porque o inquérito provou que eu era inocente, eu posso apertar um botão e mudar de fase. Na real, eu também acreditei nisso, ingenuamente. Mas não é assim. Vou ser honesto: a minha relação com as pessoas é de amor e ódio. Vou te dar um exemplo concreto. Uma vez eu estava na rua, e encontrei o diretor de uma empresa [Maher é engenheiro de telecomunicações].

Ele vem e me diz um monte de palavras de apoio --o que é uma coisa bem comum, as pessoas me reconhecem, e dizem isso. Mas aí, na relação de trabalho a coisa muda. Eu perguntei para esse mesmo diretor se ele me ofereceria trabalho na empresa dele. Ele pensa duas vezes. Sabe?

Palavras de apoio são só palavras, as pessoas pensam duas vezes antes de contratar. Isso dói, eu sou alguém que sempre me identifiquei pelo meu trabalho, a minha carreira era meio mundo para mim. Dói.

Eu meio perdi a esperança em achar um emprego, apesar de ter qualificações, apesar de minha área ser uma área em expansão. Decidi voltar a estudar. Acho que foi uma boa decisão, porque me ajudou a restabelecer a confiança em mim, em parte.

Acabei meu doutorado faz um ano e meio. Mas não procurei emprego depois, porque eu não quero mergulhar na depressão de novo, que era o que acontecia, toda vez que eu era rejeitado eu ficava mal, não conseguia comer, dormir, falar com as pessoas.

Tem gente que me diz hoje, "ah, agora vai ser diferente". Mas não vai. Com a indenização, a gente se vira. Não quero enfrentar toda a coisa da rejeição de novo, era horrível, eu não gosto nem de pensar. É isso que a minha vida virou, você entende? Minha vida, a da minha mulher, as dos meus filhos. Isso.
Um monte de gente não percebe o que significa ser acusado.

Quando eu voltei para o Canadá [em 2003], surgiram uns vazamentos do pessoal de segurança contra mim. Responder às acusações, fazer campanha pública [para promover o debate sobre o assunto], enfrentar o inquérito foi, em muitos momentos, uma tortura maior do que o que eu passei na Síria.

Um ano na Síria, ok, começa e termina. Minha batalha continua. Os primeiros cinco anos foram um pesadelo, pesadelo, pesadelo. As pessoas não conseguem nem imaginar o que passamos. É como... é... A melhor maneira de descrever é "inferno".

No começo, mudamos algumas vezes de endereço, mas por conta de não achar emprego. Estávamos vivendo de assistência social --o que, aliás, era humilhante, para um casal que estudou. Nunca achei que aconteceria comigo. Depois minha mulher arrumou um emprego.

Acho que as pessoas no Canadá têm a cabeça um pouco mais aberta do que nos EUA. Claro que tem exceções, mas o canadense médio se importa mais com justiça social do que o americano médio.

Não sei se é algo cultural. Mas o canadense médio também se informa um pouco mais sobre esses assuntos. Recebi um pedido de desculpas do governo canadense, mas nunca do governo americano. E nunca houve uma acusação formal, sabe?

Eu comecei a revista [Prism] em janeiro do ano passado, teve altos e baixos.

Comecei a revista porque minha experiência me mostrou que a mídia no Canadá e nos EUA se tornou (...) a cobertura deles relacionada à segurança nacional e terrorismo se tornou muito rasa.

Normalmente investigar, escrever uma história complexa sobre segurança, consome tempo. E havia tantas imprecisões na cobertura, não só no meu caso como em outros, que podem ser muito destrutivas para os indivíduos envolvidos.

Achei que precisávamos de algo, fosse um site, uma revista, que fizesse essa apuração mais a fundo, com gente que tivesse experiência no assunto. A Prism então preencheria esse vácuo.

As etiquetas que colam às pessoas são muito perigosas. Se você pegar uma reportagem descrevendo um atentado cometido por um muçulmano, a religião vira o foco.

Você vê termos como "terrorismo islâmico", coisas assim, enquanto se for cometido por um não-muçulmano, seja cristão ou o que for, a religião não é mencionada, e quando é, não é enfatizada.
Isso faz diferença. Falar em terrorismo islâmico atribui o terrorismo à religião, e se isso sai um milhão de vezes, é claro que vai ficar na cabeça das pessoas.

Claro que a mídia é [responsável pela falta de conhecimento das pessoas em relação a essas questões].
Os rótulos usados, a islamofobia, a mídia contribuiu para inflamar esse sentimento anti-islâmico. O que aconteceu na Noruega, por exemplo, não aconteceu do dia para a noite. Eu vi, aliás, como o [suspeito] foi descrito: como atirador de direita, até fundamentalista, mas não como terrorista cristão.

E que diferença faz se ele é cristão? Não culpo os ativistas por estarem pessimistas, ou cansados. O trabalho que eles fizeram nos últimos dez anos foi enorme. E o que eles conseguiram mudar parece tão pequeno, mesmo sob [Barack] Obama. Mas eu acredito em pessoas, não em governos.

Quem diria, um ano atrás, que a população no Oriente Médio ia se levantar contra seus ditadores? Às vezes a gente acha que as pessoas são complacentes ou indiferentes, mas elas podem ter raiva do que acontece.

No Ocidente, as pessoas costumam achar que são imunes ao que está acontecendo lá por viverem em democracia. Mas algumas políticas adotadas deste lado do mundo nos últimos dez anos emulam políticas ditatoriais, sobretudo no que diz respeito ao acesso à informação.

As pessoas se esquecem que ditaduras não nascem da noite para o dia. Somos nós que temos de fazer valer nossos direitos.

É claro que a reação americana ao 11 de Setembro feriu a democracia. Essa coisa de dois pesos e duas medidas... Hoje as pessoas no Oriente Médio podem responder aos EUA, "bom, vocês nos repreendem, mas vocês mandaram gente aqui para ser torturada".

 

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