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24/12/2012 - 03h11

Tendências/Debates: Discurso de Natal

Carlos Orsi

Tão inevitável quanto o próprio Natal são os excessos que o acompanham: de gastos, de comida, de bebida, de riso e de uma alegria que parece não ter outra fonte além da constatação de que, a despeito dos melhores esforços de nossos sábios e hábeis líderes, o país, a civilização e o mundo duraram mais um ano.

E, tão inevitável quanto os excessos, há o murmúrio que vem por baixo da música e do riso, a advertir-nos de que o Natal é uma festa desvirtuada: Papai Noel tomou o lugar do "aniversariante", o menino de Belém! E o interesse comercial engoliu a caridade. Deveríamos nos insurgir contra isso, queixa-se. O Natal deveria voltar a suas raízes cristãs.

Muitas dessas exortações são, provavelmente, bem intencionadas e, até certo ponto, salutares. Sempre é bom ter a mão estendida para os desfavorecidos, principalmente num período de ostentação e fartura, quando as desigualdades ganham ainda mais relevo.

Mas, ao falarem em "raízes cristãs", as vozes de alerta ignoram que a vinculação do 25 de dezembro à figura de Jesus de Nazaré é apenas uma dentre várias. Que a data já estava ligada a um período de festas muito antes da primeira celebração cristã de Natal registrada pelos romanos, no ano 334. Segundo o historiador húngaro Geza Vermes , "a chance de Jesus ter nascido em 25 de dezembro é de 1 em 365 (ou 366, em anos bissextos)".

Ninguém menos que o papa Bento 16 afirmou, em dezembro de 2009, que "a festa do Natal atingiu sua forma definitiva no século 4º, quando substituiu o festival romano de Sol Invictus, o sol invencível".

"Substituiu." A palavra indica que já havia uma festa, à qual o Natal cristão se sobrepôs. Como, então, falar em "raízes cristãs"? As verdadeiras raízes são muito mais profundas: mesmo a adoração romana do Sol Invictus (cuja festa, Dies Natalis Solis Invicti, já incluía até mesmo o nome "Natal") parece ter sido copiada de cultos orientais antigos.

Dos símbolos atuais do Natal, a guirlanda e a própria árvore enfeitada -cuja criação às vezes é atribuída a Lutero- remetem a mitologias que precedem o cristianismo.

O período em torno de 25 de dezembro era especial, para os povos antigos da zona temperada do hemisfério Norte, por incluir o solstício de inverno. A data marca não apenas a noite mais longa do ano como também a promessa de retorno à vida, que ressurge em meio à escuridão, ao gelo e à neve: após a maior das noites, os dias vão se tornando cada vez mais longos. O sol, aos poucos, vence as trevas.

Não é de surpreender, portanto, que celebrações marcadas por fartura, tendo como tema a alegria e a esperança de uma vida melhor, fossem populares. E, como praticamente não há civilização no mundo, hoje, que não seja fruto de um transplante ou de um enxerto da matriz do norte, também não surpreende que uma celebração tão enraizada na cultura de lá tenha se universalizado.

O caráter cristão, supostamente essencial, é apenas uma roupagem, talvez passageira, fruto de um acidente histórico. Em sua raiz mais profunda, a festa celebra não um personagem ou um sistema, mas a esperança de vida após o duro inverno, real ou metafórico.

Num mundo cada vez mais plural, todos os que desejarem partilhar do sentimento deveriam se sentir livres para dar a ele sua face favorita, incluindo a de um bebê numa manjedoura, mas também a de um velhote de gorro vermelho ou, até, face nenhuma. Doutrinas têm donos, mas alegria, esperança e generosidade não admitem monopólio.

CARLOS ORSI, 41, é jornalista e escritor, autor do livro de ensaios "O Livro dos Milagres" (Vieira & Lent) e do romance "Guerra Justa" (Draco)

 

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