Regulamento pode desvirtuar nova Lei de Migração
Avener Prado - 8.mai.2014/Folhapress | ||
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Em abrigo no Glicério, centro de SP, haitiano apresenta vagas em fábrica para compatriotas |
Quase 30 anos após a promulgação da Constituição Federal, está prestes a ser revogado o "Estatuto do Estrangeiro" (Lei nº 6.815, de 1980), um dos mais nefastos "entulhos autoritários" (normas ditatoriais persistentes na ordem democrática), que vinha sobrevivendo à lenta, e cada vez mais precária, decantação do direito brasileiro em direção à democracia.
A nova Lei de Migração (Lei nº 13.445, de 2017) entrará em vigor no próximo dia 21 de novembro. Construída por meio do diálogo entre parlamentares, agentes públicos e organizações sociais, foi aprovada por unanimidade pelo Senado Federal, o que constitui importante feito em tempos de intensa polarização política.
Ela representa um significativo avanço no que diz respeito à proteção dos direitos dos migrantes no Brasil, até então submetidos a um regime jurídico precário, incompatível com a ordem constitucional e com os compromissos internacionais assumidos pelo Estado Brasileiro.
Assim, apesar de limitada por um significativo número de vetos apostos pela Presidência da República, a nova lei também representa um importante trunfo para a imagem internacional do Brasil, tão combalida pelas sucessivas crises que o país tem enfrentado.
De um país que se pretende inserido na economia global e confiável em suas relações internacionais não se poderia esperar menos do que uma legislação migratória moderna e atraente, comprometida com as obrigações assumidas pelo Brasil por meio dos tratados de direitos humanos vigentes em solo pátrio.
No entanto, ao final do último mês de outubro, a área técnica do governo federal apresentou proposta de decreto de regulamentação da nova lei que causou perplexidade e grande apreensão.
Composta por 318 artigos que, de modo geral, desvirtuam o espírito da nova lei, dita proposta constitui uma grave ameaça a importantes avanços, tanto no que se refere aos direitos dos migrantes como no que tange à capacidade do Estado brasileiro de formular políticas adequadas em relação a essa relevante matéria.
Submetida a uma brevíssima consulta pública, encerrada recentemente, tal proposta foi alvo de numerosas críticas formuladas por especialistas, entidades sociais e instituições que se ocupam do tema em nosso país.
Em síntese, a regulamentação sugerida, se adotada, contribuirá para a criminalização da migração, promoverá a erosão de direitos consagrados na nova lei e instituirá obstáculos injustificáveis à regularização migratória.
Os autores da proposta demonstram não ter compreendido que o incentivo à regularização migratória é um requisito fundamental para a segurança nacional, eis que a entrada e a permanência regulares no Brasil dificultam a ação de redes criminosas.
É fundamental, portanto, que o governo brasileiro demonstre abertura e sensibilidade diante das críticas formuladas e reapresente uma proposta de decreto que seja compatível com o espírito da nova lei.
Causaria dano irreparável ao interesse público que sua regulamentação fosse alvo de longas e extensas batalhas judiciais, gerando insegurança jurídica para os migrantes e todos os que com eles se relacionam.
O governo brasileiro deve reconhecer no interesse público o seu próprio interesse, garantindo uma regulamentação à altura da grande conquista nacional que representa a nova Lei de Migração.
ANDRÉ DE CARVALHO RAMOS, 48, DEISY VENTURA, 50, e PEDRO DALLARI, 58, são professores da USP e integraram a Comissão de Especialistas constituída pelo Ministério da Justiça que teve a finalidade de elaborar uma proposta de Anteprojeto de Lei de Migrações e Promoção dos Direitos dos Migrantes no Brasil (2013-2014)
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