O Brasil deve manter a neutralidade da rede? SIM

Crédito: Karen Bleier/AFP Protesto pela neutralidade da rede em Washington (EUA)
Protesto pela manutenção da neutralidade da rede, em Washington

INTERNET PREMIUM PREJUDICA A INOVAÇÃO

Imagine que a água que chega à sua casa fosse contratada de modo que o fornecedor tivesse ingerência sobre o seu uso. Lavar a louça, escovar os dentes e tomar banho pode. Para lavar o carro, precisa contratar um plano premium.

Se essa distopia parece estar indo longe demais, imagine que a concessionária de água, para não onerar diretamente o consumidor, fechasse um acordo com algumas montadoras: ao comprar o carro, você leva três anos de água para manter o carro limpo.

Em linhas gerais, essa analogia espelha o efeito da revogação das regras sobre neutralidade da rede, conforme adotado pela Comissão Federal de Comunicações dos EUA (FCC, na sigla em inglês), no fim de 2017.

O princípio da neutralidade da rede determina a não discriminação no tráfego da internet pelo tipo de conteúdo, pela origem ou pelo destino da comunicação.

Uma vez contratado o acesso à rede, o provedor pode cobrar mais por uma velocidade maior, mas sem ingerência sobre quais conteúdos ou aplicações podem ser utilizados. É uma regra de isonomia.

Uma internet sem neutralidade permitiria, então, que os provedores de acesso viessem a oferecer planos similares aos da TV por assinatura. O pacote básico teria e-mail e redes sociais. Quer ver vídeos? Contrate um pacote adicional. E fazer chamadas de voz? Tem um pacote para isso.

Esse modelo criaria uma divisão entre internautas que podem acessar a internet como um todo —que, curiosamente viraria um modelo premium— e aqueles que ficariam restritos a certos usos da rede. Internautas de segunda ou terceira categoria.

Defensores da medida alegam que ela permitiria oferecer planos de acesso à rede mais baratos. Mas seria necessário transformar drasticamente a forma pela qual se entende a internet para que o acesso fosse mais barato?

A FCC alega que a mudança não muda nada para o consumidor. Por outro lado, os provedores de acesso passariam a cobrar mais de provedores de aplicação (como Facebook, Skype e YouTube) e de produtores de conteúdo (como Netflix, Folha e Globo) para que eles pudessem chegar de forma privilegiada aos seus clientes.

Esse cenário permite, então, que "vias rápidas" sejam contratadas para o acesso a aplicações e conteúdos. Mas qual o impacto de se permitir esses acordos? Ao criar essa nova fonte de recursos para as empresas de telecomunicações que atuam como provedores de acesso, a medida consolida o poder dos agentes econômicos que puderem pagar para chegar mais rápido e melhor aos internautas.

A inovação da internet surge nas pontas, com novos empreendedores criando grandes transformações. O modelo de internet sem neutralidade concentra a decisão sobre quais inovações serão implementadas nas mãos de três ou quatro grupos econômicos.

Talvez Netflix e Spotify não tivessem surgido nessas condições justamente por contrariar diversos interesses. A neutralidade da rede é boa para a inovação.

O cenário do Brasil é bem diferente dos EUA. Lá bastava uma decisão da agência para que as regras sobre neutralidade caíssem. Aqui, a neutralidade da rede é um princípio constante do Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014) e de seu decreto regulamentador. A vedação à discriminação de pacotes na rede está na lei.

Nos EUA já existe um forte movimento no Congresso para derrubar a decisão da FCC. No Brasil, o Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações já afirmou que o governo é contra mudanças nas regras sobre neutralidade.

Na estratégia digital para o Brasil, o país deve buscar tirar o melhor da neutralidade da rede e fechar a torneira para incautas transposições legislativas.

CARLOS AFFONSO SOUZA é diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro (ITS Rio) e professor da UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro)

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