Os semideuses e o vento

Crédito: Ag. Brasil  A Esplanada dos Ministérios, em Brasília; Programa de Desligamento Voluntário (PDV) teve 240 adesões em 2017 | Foto: Ag. Brasil
A Esplanada dos Ministérios, em Brasília

Gilgamesh é um semideus da Mesopotâmia cujas lendas se espalharam por todo o Oriente Médio nos primeiros milênios antes de Cristo. Como costuma acontecer, várias e por vezes divergentes são as versões de sua saga.
Escolho a mais interessante, que não é bem aquela da epopeia de fins do segundo milênio a.C., denominada "Epopeia de Gilgamesh".

A humanidade estava em crise, a corrupção dominava as instituições, governantes não se entendiam, o povo estava revoltado e se alienava. A humanidade solicita então à Assembleia dos Deuses um paladino. Os deuses enviam Gilgamesh, que tiranicamente ataca a corrupção. O paladino torna-se arbitrário, faccioso e arrogante, perseguindo os inimigos de seus amigos. A humanidade volta a clamar aos deuses.

Estes enviam, então, Enkidu, um sósia de Gilgamesh, porém seu antípoda. Um é o reflexo especular do outro. O que um ataca o outro enaltece. O que um prende o outro libera. Porém, não se compensam mutuamente.

Acabam se tornando aliados. E a humanidade sofre com as atuações dos semideuses antípodas, pois as ações de um não neutralizam os malefícios do outro. Um rosna, outro faz beicinho. Um morde, o outro lambe.

A lenda de Gilgamesh e Enkidu, em suas múltiplas versões, não define o destino final desses dois semideuses extemporâneos. Teriam um dia se anulado, um ao outro? Teriam se fundido em um único ente, anulando mutuamente suas perversões? Ou teriam ampliado as suas qualidades maléficas complementares? Teriam, talvez, se neutralizado, como parece ter sido a intenção dos ingênuos deuses?

De minha parte, acho que ainda estão por aí, para infernizar a humanidade. Há até mesmo consistentes evidências científicas de que tenham migrado para o Brasil e de que tenham se empossado de poderes mundanos, continuando sua trajetória intempestiva de maldades.

Mas eis que o povo cansado dos Gilgameshs e dos Enkidus já se prepara para recorrer novamente à Assembleia dos Deuses para lhes implorar que enviem um novo paladino que derrote os dois outros já instalados em seus poderes.

Até hoje a humanidade, e isso desde os tempos mesopotâmicos, não aprendeu que semideuses com semideuses se confraternizam. Que semideuses não contemplam, nem sequer entendem, as aflições do povo. E, pior ainda, não consideram ou nem sequer percebem que, ao apelar à Assembleia dos Deuses por um paladino, abdicam de seu poder maior, que está em suas próprias mãos, nas ruas, no vento, enfim.

É preciso que o povo aprenda que, para se livrar de semideuses desafetos, o melhor remédio é o vento. Somente o vento, apenas o vento é capaz de derrotar os semideuses usurpadores da justiça e da política nacional.

ROGÉRIO CEZAR DE CERQUEIRA LEITE, físico e professor emérito da Unicamp, é membro do Conselho Editorial da Folha e presidente do Conselho de Administração do CNPEM (Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais)

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