A quem interessa negar o trabalho escravo pelo esvaziamento via ideologia?

Crédito: Karime Xavier / Folhapress SUL DA BAHIA / BRASIL - 01/11/17 - :00h - Diligência de trabalho escravo no sul da Bahia. Fiscalização realizada por auditores, procuradores e polícia rodoviária federal, visita fazendas para inspeção das condições de trabalho. Marivaldo de Souza (esquerda) , 39, conta que para ter energia para trabalhar o dia todo no corte de cana leva uma "merenda" que ele mesmo compra nos dias de folga. A empresa fornece o almoço e um café no início de cada jornada às 6h. Quando o reportagem o encontrou cortando cana em uma zona rural no sul da Bahia passava das 16h. ( Foto: Karime Xavier / Folhapress) . ***EXCLUSIVO***MERCADO
Fiscalização contra trabalho escravo em fazenda de cana no sul da Bahia

Uma das formas de rebater ou de enfraquecer conceitos ou argumentos é inseri-los na genérica categoria das noções ideológicas. Nesse viés argumentativo, se um determinado posicionamento é considerado "ideológico", ele é moralmente tomado por inferior e é logo descartado.

Foi o que tentou fazer o ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes em afirmação polêmica acerca da infeliz portaria nº 1.129, de outubro de 2017, do Ministério do Trabalho, que reduzia o conceito de trabalho escravo. Segundo o ministro, a interpretação das expressões "jornada exaustiva" e "condições degradantes de trabalho" não poderia ser ideologizada e, somente no Brasil, "altura de beliche e tamanho de armário geram discussão sobre trabalho escravo". Para ele, haveria um viés interpretativo a prejudicar empregadores.

É comum empregadores flagrados ao submeter trabalhadores a condições degradantes reclamarem de "exageros" da fiscalização, como se os auditores agissem, por ideologia, favoravelmente aos trabalhadores.

Por essa linha de pensamento, deixa-se à margem importante debate a respeito das reais condições do trabalho da grande massa de trabalhadores no país, especialmente aqueles localizados em regiões distantes dos grandes centros, onde a fiscalização é precária e o mercado de trabalho, escasso.

Mesmo com as empresas recorrendo à Justiça para desqualificar a atuação fiscal, é baixo o índice de anulações judiciais dos autos de infração lavrados. Omite-se que são praticamente inexistentes condenações da União por excessos cometidos por agentes públicos nas fiscalizações apontadas como "abusivas".

Ao reputar como "ideológica" a ação dos agentes, intencionalmente, deixa-se de trazer ao debate público o fato de que, no Brasil, a força de trabalho é considerada pelas empresas como custo operacional e não como investimento —o que dificulta a valorização do trabalho humano e o desenvolvimento social do país.

Ao se rotular a política de combate ao trabalho escravo como "ideológica", retira-se de foco outra política, esta sim verdadeiramente ideológica: a de que seria necessário acabar com as regras que protegem o trabalho decente como forma de reduzir os custos operacionais das empresas.

Se por um lado são constantes os ataques aos direitos sociais, por outro são evidentes as respostas por parte dos órgãos do sistema de justiça, da sociedade civil e da comunidade nacional. A nova Portaria nº 1.293, do MTb, no dia 28 de dezembro de 2017, é o reconhecimento dessa forte atuação.

Devem os governantes observar que a ordem econômica brasileira é fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa. É por conta desses dois pressupostos constitucionais que a nova portaria, como reflexo à forte pressão dos diversos segmentos, reconhece que "o trabalho realizado em condição análoga à de escravo, sob todas as formas, constitui atentado aos direitos humanos fundamentais e à dignidade do trabalhador".

A despeito das posições ideológicas, o Estado democrático de Direito se funda em princípios constitucionais inafastáveis. É inconstitucional e ilegítima a desconstrução do arcabouço normativo que ampara o trabalho decente no Brasil. Por anos reconhecido como exemplo de iniciativas de erradicação do trabalho escravo, o país acabou exposto internacionalmente.

É preciso reconhecer que, somente com condições de trabalho dignas e justas, avança uma nação e diminuem-se as desigualdades sociais. E essa conscientização depende de todos, inclusive dos empregadores, que, se respeitam as regras e não utilizam mão de obra escrava, agregam valor social à empresa, algo cada vez mais exigido e valorizado pelos consumidores.

CATARINA VON ZUBEN e ULISSES DIAS DE CARVALHO são procuradores do Ministério Público do Trabalho e coordenadores Nacionais de Erradicação do Trabalho Escravo (Conaete)

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