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Alfredo Attié: Os inimigos do povo

A pretexto de defesa dos "soldados na guerra" da intervenção no Rio, atacam-se a Constituição e tratados de direitos humanos em vigor

Duas mulheres, uma delas com um bebê no colo, passam ao lado de soldados das Forças Armadas durante operação na Vila Kennedy, na zona oeste do Rio
Forças Armadas durante operação na Vila Kennedy, na zona oeste do Rio - Danilo Verpa/Folhapress
Alfredo Attié

No Estado democrático de Direito não há amigos nem inimigos, mas regras e princípios de convivência e de cidadania e de proteção à pessoa e sua dignidade.

O termo "inimigo interno", empregado por advogado em artigo de apoio à intervenção federal no Rio ("Deus abençoe nossos soldados na guerra"), publicado nesta Folha em 13/3, não consta da Constituição, nem mesmo das disposições sobre o estado de sítio e o estado de emergência (artigos 136 a 141), da definição das Forças Armadas (artigos 142 e 143), do artigo 144, relativo à Segurança Pública, da Lei Complementar 97/1999, que regulamenta a atribuição das Forças Armadas, nem do decreto 3897/2001, que rege o uso dessa instituição para Garantia da Lei e da Ordem.

Esse termo tem origem e lugar na velha doutrina da segurança nacional, que fundamentava as ações da ditadura civil-militar.

Surpreende que tenha sido revivido no artigo referido, no conjunto de outros termos, que figuram um arsenal de combate ao próprio Estado democrático de Direito.

Assim, a pretexto de "defesa do Exército" ou dos "soldados na guerra", atacam-se a Constituição, tratados de direitos humanos em vigor no Brasil e a função da Justiça e do Ministério Público, além de abertamente pugnar por supressão de controles e garantias constitucionais.

"Direito dos manos"; supressão prévia de investigação e punição de crimes, tomados como legítimos --o "massacre do Carandiru"; distinção entre "pessoas de bem" e população das periferias, postas previamente como inimigas da lei e da ordem; "terroristas", no cenário imaginado de uma "guerra ao terror", em que "pessoas podem ser abatidas —inclusive com a possibilidade de mortes de civis".

Construindo uma sociedade dividida entre bons e maus, amigos e inimigos do Estado, propõem-se o apoio às Forças Armadas e a defesa de militares, mesmo que acusados de abuso, perante a Justiça Militar. Ou seja, a supressão da fiscalização da sociedade e das instituições de controle do Estado sobre as ações da intervenção.

Parece evidente que essa defesa intransigente de uma ordem que não é acolhida pela Constituição tem sua raiz no próprio decreto de intervenção, que se eximiu de fundamentar suas razões, parecendo fazer uso da sensação de insegurança em que vivem as cidades brasileiras para dar margem à prática de atos abusivos, de mapeamento social, sem identificação de causas de violência, de métodos de atuação consentâneos com recomendações de instituições de pesquisa isentas nacionais e internacionais e de agências internacionais.

Estas, aliás, são tachadas pelos defensores da intervenção a qualquer custo como amigas do crime, simplesmente porque calçam suas conclusões em pesquisas científicas, com a participação de amplo espectro de especialistas e formuladores de políticas públicas. Porque não olvidam os limites dos direitos e o arcabouço internacional de proteção à pessoa humana.

A execução de Marielle Franco demonstra esses equívocos, pela presença de milícias incrustadas no Estado e que têm escapado da ação dos interventores.

O direito e sua racionalidade não podem ser ignorados na implementação de ações públicas. Fica complicado defender que qualquer ação é válida, pondo de lado séculos de construção civilizacional; que a lei pode ser contornada, expressão que é de garantia de cidadãos e cidadãs contra o arbítrio do poder público ou privado. Mormente quando as ações são tomadas de modo abrupto, adornado por atos espetaculosos aptos apenas a amortecer o juízo crítico cidadão e amealhar votos em cena eleitoral.

A solução dos problemas da segurança e da violência está nas mãos da sociedade e não depende da entronização falaciosa de salvadores da pátria. O crime está em desrespeitar a lei e a Constituição.

ALFREDO ATTIÉ é presidente da Academia Paulista de Direito (APD), desembargador do TJ-SP, pesquisador e doutor em filosofia da USP

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