À crise política vivenciada por nossa democracia nos últimos anos podem ser atribuídas diversas causas, que vão desde a astenia do atual modelo representativo e partidário até a falta de responsabilidade de agentes públicos que confundem atribuições funcionais com desejos pessoais, extrapolando suas competências e inserindo o Estado em severa crise institucional.
Tornou-se comum no Brasil que funcionários públicos investidos em cargo público por outra via que não a do voto popular, motivados pelo que batizei de "Efeito Dallagnol" (exercício obsessivo de retórica demagoga voltada à obtenção de seguidores, aplausos e likes nas redes sociais), pratiquem atos exclusivos de agentes políticos, que são os que exercem suas funções em representação conferida pelo voto popular.
Nesse contexto, é comum ver alguns membros do Ministério Público confundirem suas atribuições de fiscal do ordenamento jurídico com a prerrogativa privativa dos chefes do Executivo de exercer a administração da coisa pública, identificando discricionariamente o que é prioritário, conveniente e oportuno.
A situação se agravou quando o "Efeito Dallagnol" contaminou setores da magistratura, que agora defendem que uma alegada violação da moralidade administrativa lhes confere a prerrogativa exclusiva da Assembleia Nacional Constituinte ou do Congresso Nacional de reescrever o texto constitucional.
Moralidade é um conceito jurídico indeterminado; uma regra cujo conteúdo demanda preenchimento por outra norma na análise do caso concreto. Não pode o debate, pois, excluir o fato de que somente se faz possível violar qualquer regra moral quando tais condutas estão previamente estabelecidas de modo objetivo em códigos morais, como a Bíblia e o Alcorão, ou em códigos de ética profissional.
No caso do Executivo, as condutas morais a serem observadas estão exaustivamente reguladas em leis, decretos e resoluções que integram o Código de Conduta da Alta Administração Federal.
Em nenhuma dessas regras existe a previsão, por exemplo, de que condenação trabalhista impede posse no cargo de ministro do Trabalho, até porque não poderia violar a moralidade administrativa a nomeação de um auxiliar presidencial que preenche requisitos constitucionais para ser o próprio presidente da República.
Recentemente, o ministro Luís Roberto Barroso, do STF, afirmou que "a prerrogativa do presidente da República de perdoar penas não é, e nem poderia ser, um poder ilimitado", ao tempo em que asseverou ter havido desvio da finalidade do indulto de 2017 e violação dos princípios da moralidade e da separação dos Poderes.
Pergunto: considerando que de fato o poder de indultar não é um poder ilimitado, visto que o próprio constituinte estabeleceu objetivamente seus limites no texto constitucional, o fato de um juiz editar novas regras de aplicação de um decreto sob sua análise, criando outros limites, não desvia a finalidade do ato jurisdicional e não ofende, a um só tempo, tanto a moralidade administrativa, por usurpação de competência, quanto a própria separação dos Poderes?
Uma última reflexão: em um país onde quase 70% da população sustentam suas famílias com um salário mínimo (mais de 40 milhões recebem menos que isso), é ilegal que classes profissionais iniciem suas carreiras recebendo perto do teto constitucional e ainda postulem o recebimento de auxílio-moradia em valor quatro vezes maior que o salário mínimo?
E, caso o Supremo decida pela legalidade, isso seria imoral sob a perspectiva da moral cristã, da moral pública ou mesmo da moral administrativa? Com a palavra, os autoproclamados defensores da moralidade administrativa.
Erick Vidigal: O STF e a moralidade administrativa
Para setores da magistratura, uma alegada violação da moralidade administrativa lhes confere a prerrogativa de reescrever a Constituição
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