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Ivan Marques: Armas nos EUA, uma mudança em marcha

Ao conversar com muitos estudantes americanos, o que mais chamou a atenção foi a clareza de que a situação atual do país em sua relação com armas de fogo é simplesmente irracional

No sábado passado (24) marchei pelas ruas de Nova York ao lado de 200 mil pessoas que exigiam a adoção de regras mínimas para o controle de armas de fogo nos Estados Unidos. Quase um milhão de pessoas também foram às ruas em Washington e muitas outras cidades nos EUA e ao redor do mundo, fazendo do ato a maior manifestação pública desde a luta pelos direitos civis no país.

Gente de todas as origens, raças e idades contagiava os que assistiam do gradil e das janelas dos arranha-céus de Manhattan. Exibiam cartazes criativos, profissionalmente impressos ou feitos à base de caneta hidrocor e cartolina, cujo grito de ordem pode ser resumido na mensagem: “Queremos que a vida, e não as armas, seja prioridade em nosso país”.

O espírito jovem, cheio de garra e direto ao ponto dos alunos sobreviventes do massacre que vitimou 17 pessoas na escola secundária Stoneman Douglas, na Flórida, deu o grito de “basta” para o país mais armado do mundo e cuja taxa de mortes por armas de fogo também é a mais alta entre os 15 países mais desenvolvidos. 

Ao conversar com muitos à minha volta, o que mais chamou a atenção foi a clareza de que a situação atual do país em sua relação com armas de fogo é simplesmente irracional. Muitos disseram que é mais fácil comprar um fuzil de guerra com munição ilimitada em um supermercado do que comprar pílulas anticoncepcionais. 

Evidente, também, que muito da energia dos manifestantes foi alimentada pela insatisfação política com o presidente Donald Trump, envolvido em escândalos que vão desde seus casos extraconjugais até as graves acusações de manipulação das eleições que o colocaram na Casa Branca por meio de fraudes nas redes sociais. Ao passar em frente às torres que levam seu nome, a marcha mudava as palavras de ordem contra as armas para evocar um uníssono “vergonha”, em alto e bom som.

O Brasil sofre do mesmo mal em relação à insatisfação com a classe política, dada a baixíssima popularidade do governo federal. É verdade também que, assim como os americanos, nossa gente deixou a inércia para se manifestar contra o brutal assassinato da vereadora Marielle Franco e Anderson Gomes, levando milhares de brasileiros às ruas e batendo recorde de movimentação nas redes sociais.

No entanto, nesta situação, a similaridade mais sombria entre Brasil e EUA vem da completa dissonância entre parte dos deputados e senadores e da população em relação ao controle de armas de fogo. Por lá, sabe-se que o poder da indústria de armas e munições, capitaneada pela poderosa NRA (Associação Nacional do Rifle), dita as regras e impede que restrições, por mais simples que sejam, possam ser criadas.

Já aqui, o sentido é inverso: nosso Congresso Nacional insufla a narrativa do medo e, apostando na sensação de insegurança da população, quer acabar com o mínimo de controle existente e liberar armas para a sociedade brasileira.

A mistura perigosa entre o medo e a descrença de que o Estado seja capaz de promover políticas públicas de segurança e justiça tem resultado conhecido. Estimula a violência individual, o fascismo e o sentimento de que os problemas de insegurança devem ser resolvidos na base da justiça com as próprias mãos, o que gera invariavelmente mais violência.

O que falta à boa parte de nossa classe política ao olhar para os Estados Unidos é entender que o problema evidenciado nas marchas promovidas pelos estudantes no último sábado nasceu justamente pelo excesso de facilidades em se obter armas de fogo. Ainda pior, nossos dirigentes também ignoram o que tirou Nova York da violência nos anos 80 e 90. Não foi a liberação de armas para a população, pelo contrário: o estado tem uma das legislações mais restritivas se comparada a outros estados americanos.

Mais que isso, o que transformou a cidade que em 1990 teve seu pico de homicídios (30,6 por 100 mil habitantes – o Brasil tem hoje 29,9) para uma situação pacífica de 3,3 em 2017 foi justamente o que falta por aqui: investimento em políticas públicas de segurança continuadas e combinadas com a recuperação social de áreas e populações flageladas pela desigualdade.

No entanto, como bem sabe a classe política de lá e daqui, transformações desse tipo não dão dinheiro para campanhas eleitorais e muito menos lucro para a indústria de armas.

Ivan Marques

Advogado, ex-coordenador geral do Programa Nacional de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos e diretor-executivo do Instituto Sou da Paz

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