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Nelson Barbosa: A economia de espantalhos perpétuos

Lamento que Lisbossôa queira construir caricaturas em vez de analisar e propor soluções para nossos problemas econômicos

O ex-ministro da Fazenda e do Planejamento Nelson Barbosa fala em sessão no Senado, em agosto de 2016
O ex-ministro da Fazenda e do Planejamento Nelson Barbosa fala em sessão no Senado, em agosto de 2016 - Alan Marques - 27.ago.16/Folhapress

Na segunda-feira passada (26), Marcos Lisboa e Samuel Pessôa publicaram neste espaço mais um texto ("A economia do moto perpétuo") de construção de espantalhos. Como é difícil saber onde um termina e o outro começa, me referirei à dupla como uma só pessoa para economizar caracteres: "Lisbossôa".

Para Lisbossôa, todos os heterodoxos brasileiros acreditam na "economia do moto perpétuo", segundo a qual o gasto público sempre se autofinancia. Trata-se obviamente de uma caricatura pois, se há uma coisa que define heterodoxia, é justamente não ter pensamento único!

Nós brigamos muito entre nós mesmos, mas alguns economistas ortodoxos têm dificuldade em compreender isso, pois não sabem o que é divergência de opinião.

Lisbossôa não está totalmente errado, pois realmente há minorias heterodoxas que acreditam que mais demanda resolve todo e qualquer problema. Mas isso é um caso isolado, como também é aquele dos neoliberais de jardim de infância da direita, para os quais menos gasto público é o caminho do paraíso na Terra (imagine uma economia com zero de serviços públicos ... pois é).

Uma análise honesta da questão revela que o impacto de uma expansão fiscal sobre renda, preços e dívida pública depende das condições iniciais da economia.

Se há recursos ociosos e ganhos de produtividade que podem ser rapidamente acionados, o estímulo fiscal pode ser acompanhado de crescimento, queda do endividamento público (em relação ao PIB) e controle da inflação.

O próprio texto de DeLong e Summers citado por Lisbossôa analisa esse caso, como também o fez recentemente o insuspeito FMI, ao revisar suas estimativas de multiplicadores fiscais, e Auerbach e Gorodnichenko, em outra autocrítica apresentada no último encontro anual de Jackson Hole.

Mas vamos ao Brasil. Lisbossôa cita um texto de minha coautoria como prova (acusação?) da hipótese do moto perpétuo. Trata-se de mais uma pós-verdade no debate econômico brasileiro.

O texto em questão analisa a correta inflexão da política econômica do governo Lula, em 2006-10, quando houve expansão fiscal, aceleração do crescimento, controle da inflação e redução da dívida pública. Os números falam por si, mas o sucesso daquela época não quer dizer que toda expansão fiscal será sempre bem-sucedida, como indica o ocorrido em 2012-14, quando as condições iniciais eram diferentes.

Lisbossôa ignora essa diferença, como também esquece que a grande flexibilização fiscal de 2016-17 contribuiu para a estabilização da economia brasileira recentemente. Em um resultado tipicamente keynesiano, o déficit primário subiu, a renda e o emprego se estabilizaram, e a inflação caiu.

Ainda faltam controlar o crescimento da dívida e recuperar o crescimento de modo duradouro, mas os últimos dois anos comprovaram que era necessário flexibilizar temporariamente a política fiscal no Brasil (ponto para a heterodoxia).

Lamento a opção de Lisbossôa por construir caricaturas, pois é impossível debater de modo construtivo com pessoas mais interessadas em confundir o público do que em analisar e propor soluções para nossos problemas econômicos.

Mas a vida continua, e ainda creio que exista honestidade na ortodoxia brasileira. Se não em Lisbossôa, talvez entre aqueles que não precisam de espantalhos perpétuos como muleta.

Nelson Barbosa

Doutor em economia e professor da FGV e da UnB; ex-ministro da Fazenda e do Planejamento (2015-2016, governo Dilma Rousseff)

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