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Anna Veronica Mautner: Querer não é mais poder

Quando quero, antevejo, vislumbro um horizonte; quando não quero nada, a vida fica limitada ao aqui agora, ao estritamente necessário

A psicanalista Anna Veronica Mautner, em evento em dezembro de 2017
A psicanalista Anna Veronica Mautner, em evento em dezembro de 2017 - Mastrangelo Reino - 7.dez.17/Folhapress

A crise pessoal de cada um de nós e também de todos é grave: não há fé. Falta fé —espiritual e material.
Isso não quer dizer que criticamos ou desprezamos o que está em torno de nós. Apenas não confiamos.

Não temos fé na existência de estruturas que possam nos apoiar. Feliz de quem se apoia numa força maior que si próprio. A pessoa religiosa ou alguém que crê em uma ideologia.

Lendo o jornal de cabo a rabo, não vejo luta por algo que se imagine valer a pena o sacrifício. Não chega a ser uma desolação, apenas falta de fé. Do nosso mundo interior para nossa vida familiar, grupal ou social em geral, poucos veem em seu horizonte sinais de promessas pelas quais valeria a pena lutar. É nesse clima que as novas gerações vão sendo criadas. O que será delas?

Tenho uma formação razoável em ciências humanas, e não me ocorrem referências a uma sociedade que não vislumbre ou uma catástrofe ou uma vitória em futuro próximo. Viver só pelo "pão nosso de cada dia" é pouco se cada um de nós e todos nós não vislumbrarmos algo no horizonte. O que será de nós?

E não estou falando de depressão, que seria, tão somente, um defeito de percepção. Estou tentando formatar como seria a vida sem amanhã —sonhado, imaginado ou desejado.

Tem uma frase antiga que, quando eu era criança, diziam muito e eu não levava a sério: querer é poder. Se não quero ter realização individual, o que me surpreenderá positiva ou negativamente? Quando quero, antevejo, vislumbro um horizonte. Quando não quero nada, a vida fica limitada ao aqui agora, ao estritamente necessário.

As ideologias que afirmam que devemos lutar por igualdade venceram. A legislação que rege o mundo moderno dá especial ênfase à ideia de "direitos iguais". Assim, sonhar em se destacar em relação aos outros começa a ficar "feio".

O princípio da igualdade tirou as áreas que cabiam para os sentimentos do "direito de ter". Já que temos direito, precisamos apenas verificar se o meu direito pode ser respeitado. Não tenho por que lutar, apenas controlar a minha vida. Era assim a descrição da vida dentro de tribos primitivas. Se eram da tribo, eram iguais entre si.

Durante muitos séculos ou, melhor, milênios, lutamos para impor o princípio da igualdade que tínhamos perdido na época em que o mundo passou de tribo para sociedade.

E, agora, como retornar à vida do predomínio do natural e não do social? Ajudem-me a encontrar esse caminho. Estou perdida.

Anna Veronica Mautner

Psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo e autora de "Cotidiano nas Entrelinhas" (ed. Ágora)

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