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José Vargas Junior: 'Talvez seja melhor você não se envolver tanto!'

Chacina em Pau D'Arco, no Pará, completa 1 ano sem que se saibam os mandantes

Familiares enterram uma das vítimas da chacina de Pau D'Arco, no Pará
Familiares enterram uma das vítimas da chacina de Pau D'Arco, no Pará - Avener Prado - 26.mai.18/Folhapress

Um ano atrás, alguns dias após o massacre de Pau D'Arco, eu voltava do local onde se havia dado a chacina na companhia de Juliana Oliveira, grande amiga e coordenadora do Núcleo de Direitos Humanos da Defensoria Pública do Pará. "Vargas, e essa tragédia?", indagou Juliana.

A única coisa que consegui responder foi: "Que tragédia é não acreditar nos direitos humanos! E que tragédia é acreditar neles." É difícil viver em um mundo sem convicções porque toda hora você precisa fazer um juízo de valor sobre algo, e não há juízo de valor possível quando não se tem nenhuma convicção.

Ninguém sabia nada, e o fato de eu ser o advogado dos trabalhadores rurais criou uma expectativa de que eu teria todas as respostas. Para mim, a única pergunta possível e urgente de ser respondida era "Por que é que as forças policias do Estado julgam que podem matar dez pessoas e têm a certeza de que isso ficará impune?"

Quem decide quais pessoas são descartáveis e quais merecem ter não direitos, mas privilégios assegurados? "Talvez seja melhor você não se envolver tanto!", dizia o advogado e militante histórico da Comissão Pastoral da Terra, José Afonso Batista, e que a esta altura estava tão envolvido quanto eu na história. 

Esta certamente foi a frase que mais ouvi no último ano, mas foi nesse dia que eu me ative pela primeira vez à diferença fundamental sobre como ela pode ser dita. E foi nesse dia, quando me dei conta disso pela primeira vez, que consegui formar minha primeira convicção e recomeçar minha vida: não são as palavras, mas a intenção por trás delas é que importa.

São milhares as pessoas incríveis que conheci nesse um ano, porque nada, absolutamente nada foi conquistado nessa história com facilidade: desconstruir a versão insustentável do confronto entre trabalhadores e policiais; garantir que os familiares pudessem enterrar seus mortos; assegurar uma investigação policial efetiva; buscar uma instrução criminal que responsabilize os culpados; tudo, absolutamente tudo foi uma luta extenuante.

Nunca lutei sozinho; sempre se apresentaram pessoas incríveis para estar ao meu lado. Certa vez estive no acampamento de reocupação da fazenda para comunicar ao líder do local que o nome dele tinha aparecido em uma das listas de "pessoas marcadas para morrer".

Era uma quarta-feira de sol forte, os acampados sofriam com a falta de água do período de seca. Rosenildo me chamou: "Chega para cá que tem um café sem açúcar, doutor". Sentei no barraco, expus a situação, a preocupação e disse: "O pessoal acha que é mais seguro você ficar aqui no acampamento". "Não posso, tenho que ir em Rio Maria ver meus filhos", ele disse. Insisti. Ele riu. Rimos, terminei o café, levantei, dei um abraço nele e disse "Te cuida, Negão!". Ele retribuiu: "Você também, doutor." Dois dias depois, Rosenildo foi assassinado ao lado dos seus filhos, saindo da igreja.

Um ano se passou e ainda falta muito, é verdade: descobrir quem são os mandantes do crime, garantir que todos os responsáveis sejam efetivamente responsabilizados, assegurar que a fazenda seja destinada para a reforma agrária, conseguir assistência do Governo do Estado do Pará para que os familiares das vítimas vivam com um mínimo de dignidade.

Por tudo isso, apesar da escalada do fascismo, do aumento do discurso de ódio, da luta extenuante por direitos, sigo cantando Belchior: "Mas eu não estou interessado em nenhuma teoria, em nenhuma fantasia, nem no algo mais; amar e mudar as coisas me interessa mais."

Em memória de Jane Júlia, uma das vítimas da chacina de Pau D'Arco (PA) e uma das melhores amigas que tive, mulher de mais fibra que conheci

José Vargas Junior

Advogado das famílias das vítimas da chacina de Pau D'Arco, no Pará

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