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O limite imposto pelo Supremo Tribunal Federal para o foro especial é uma boa solução? NÃO

Um tom de cinza nos limites ao foro privilegiado

 Sessão plenária do STF sobre foro especial
Sessão plenária do STF sobre foro especial - Pedro Ladeira - 2.mai.18/Folhapress
Luciano Godoy

A prerrogativa de foro voltou ao debate público em uma questão de ordem julgada no Supremo Tribunal Federal. Ao decidir sobre a questão, limitando o alcance do benefício, o tribunal corajosamente passou à sociedade e ao Parlamento a mensagem de que o modelo atual está ruim e não funciona. Mas a nova orientação assentada pelo Supremo, na prática, gerará dúvidas.

A primeira orientação é que, a partir de agora, o STF só julgará em prerrogativa de foro os crimes das autoridades previstas na Constituição Federal cometidos durante o mandato. Até aí, tem-se um critério temporal, objetivo e claro.

Mas o segundo comando, que é julgar só os crimes relacionados à função, é subjetivo e gera mais dúvidas do que soluções. Além disso, será acrescentada a inconstitucionalidade das demais prerrogativas de foro, trazidas por outras leis que não a Constituição Federal.

O foro por prerrogativa de função é um instrumento jurídico que prevê o julgamento de crimes imputados a determinadas autoridades por cortes de Justiça, não pelo juiz de primeira instância.

Hoje vista como privilégio, a prerrogativa foi concebida originalmente como uma garantia aos titulares de determinados cargos públicos, para que pudessem exercer adequadamente suas funções —atualmente, porém, são mais de 50 mil cargos previstos na legislação como beneficiários do foro especial.

Não há dúvida de que a atual situação do STF não pode ser mantida. A "onda" inaugurada pela Lava Jato levou ao Supremo grande volume de casos criminais de políticos, transformando-o em tribunal penal para inúmeros réus. Além disso, colheita de prova (testemunhas, perícias e inspeções) é atividade típica de juiz de primeira instância.

Um tribunal não é adequado para esse tipo de julgamento, uma vez que a decisão é colegiada. Basta lembrar que são três, cinco, onze juízes ou ministros para lerem documentos e alegações e proferirem votos. Ficou ainda mais congestionado. Daí a percepção (meio certa!) de privilégio.

Uma das dificuldades do novo entendimento se refere à correlação entre o crime e o exercício da função, o que, por vezes, dependerá da produção de prova. Será preciso buscar elementos para concluir sobre a parcela de culpa da autoridade, a existência de autoria etc.

A regra de competência judicial é no sentido de que quem colhe a prova é o juiz que julgará o caso. A competência, por outro lado, é definida previamente à produção da prova --aliás, a prova só pode ser produzida pelo juízo competente. 

É possível antever, por isso, discussões nesse largo espaço de tom cinza. Não está bem definido quem será o juiz responsável pelo julgamento. Também não está clara a forma de enquadramento no novo critério. 

Se uma autoridade dirige um veículo oficial embriagada, a acusação será tipificada como crime no exercício da função ou não? Essas obscuridades, certamente, provocarão novos recursos para que o STF delimite caso a caso a competência. Melhor seria se o legislador fixasse um rol de crimes que seriam próprios da prerrogativa de foro.

Ao mesmo tempo, é válido destacar a necessidade de haver um olhar de gestão e de eficiência na Justiça. Isso demanda aparelhamento e aperfeiçoamento dos ritos e dos instrumentos. Valorização profissional do magistrado e dos servidores, com melhores condições e remuneração adequada.

Toda e qualquer autoridade, com exceção do presidente da República, em breve tempo estará sujeita a julgamento em uma das varas criminais da Justiça brasileira. O tempo vai dizer o quanto foi acertada a decisão. Mas não há, hoje, outro caminho.

No sentido da segurança jurídica, melhor seria se as mudanças necessárias ao sistema viessem por alteração da Constituição e da legislação. As propostas já existem em debate no Parlamento e na academia.

Luciano Godoy

Advogado, professor da FGV Direito São Paulo e ex-juiz federal; mestre e doutor em direito pela USP

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