A recente atitude dos caminhoneiros nos levou de volta à década de 80, quando os vários grupos organizados conseguiam obter benesses do governo em detrimento do resto da sociedade. Em particular, chama a atenção o acordo que o governo fez com relação aos preços praticados nesse mercado.

Definir tabela de referência de frete de serviço de transporte ou estabelecer cotas para a contratação de determinados grupos pela Conab (Companhia Nacional de Abastecimento), inclusive valendo-se de dispensa de licitação, ferem princípios basilares da livre iniciativa e da livre concorrência.

Tabelas de referência servem, na maioria das vezes, como parâmetros para se definir preços supracompetitivos entre concorrentes. O estabelecimento de cotas também tem efeito semelhante, na medida em que cria um nicho de mercado paralelo e restrito, garantindo uma renda extra para o grupo que dele participa.

Tais objetivos foram nitidamente buscados a partir de uma ação coordenada entre caminhoneiros e empresas de transportes, tendo por efeito a distorção da concorrência e a elevação de preços ao longo de toda a cadeia de distribuição.

Nesse sentido, o inciso I (a) do § 3o do artigo 36 da Lei 12.529/2011 é taxativo em considerar como infração à ordem econômica "acordar, combinar, manipular ou ajustar com concorrente, sob qualquer forma, os preços de bens ou serviços ofertados individualmente".

Além disso, os incisos III, V e XIII do mesmo artigo definem também como infração: "limitar ou impedir o acesso de novas empresas ao mercado; impedir o acesso de concorrente às fontes de insumo, matérias-primas, equipamentos ou tecnologia, bem como aos canais de distribuição; e destruir, inutilizar ou açambarcar matérias-primas, produtos intermediários ou acabados, assim como destruir, inutilizar ou dificultar a operação de equipamentos destinados a produzi-los, distribuí-los ou transportá-los". Como se percebe, o conjunto de condutas desses profissionais se enquadra perfeitamente na lei de defesa da concorrência.

Essa mesma lei também define sanções administrativas para quem estimula um acordo como este. Neste grupo podem ser incluídos desde sindicatos até agentes públicos. Isso porque, no inciso II § 3o do artigo 36 da lei, está claro que também é uma infração à ordem econômica promover, obter ou influenciar a adoção de conduta comercial uniforme ou concertada entre concorrentes. 

Note-se ainda que tais condutas podem também ser enquadradas nos incisos I e II do artigo 4º da lei que define crimes contra a ordem econômica (Lei 8.137/1990), cuja penas estão claramente definidas no Código Penal. 

Finalmente, há que se considerar os incentivos de médio e longo prazo gerados a partir da extinção de ações judiciais possessórias e dos termos do acordo até agora aceitos pelo governo. Ao não impor as devidas penalidades aos que participaram do boicote dos caminhoneiros e ao aceitar termos nitidamente ilegais, que serão arcados pela sociedade, o atual governo indica para outros eventuais grupos de interesses que essa estratégia é aceitável e eficaz, fato que estimulará outros boicotes futuros.

Em última instância, o atual governo está permitindo e estimulando um verdadeiro atentado aos princípios da livre iniciativa e concorrência, preconizados no artigo 170 da Constituição Federal, e induzindo o país a um verdadeiro regime anárquico no qual quem pode mais chora menos.

Cleveland Prates

Economista, professor da FGV-Law, ex-secretário-adjunto de Acompanhamento Econômico do Ministério da Fazenda (1999-2002, governo FHC) e ex-conselheiro do Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica - 2002-2004, governos FHC e Lula)

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