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Jom Tob Azulay e Gilberto Gil: Israel, entre o sagrado e o profano

Não se pode crer que país esteja acima do bem e do mal

Gilberto Gil e Caetano Veloso em Susiya, na Cisjordânia, em julho de 2015
Gilberto Gil e Caetano Veloso em Susiya, na Cisjordânia, em julho de 2015 - Acervo Uns Produções

Em nosso artigo intitulado "O dilema de Israel", publicado nesta Folha em 3/6, criticamos a política que o governo israelense vem adotando em relação aos palestinos. Crítica, por sinal, endossada pela ONU e pela União Europeia, como ocorreu por ocasião dos conflitos de 15 de maio, quando morreram ao menos 60 palestinos, e em 8 de junho, quando morreram pelo menos 4 palestinos e 620 foram feridos.

Não obstante, afirma Fernando Lottenberg, presidente da Conib (Confederação Israelita do Brasil), em artigo publicado por esta Folha em resposta ao nosso ("Para além do maniqueísmo", 10/6), que fazemos "o jogo da mais desabrida versão contemporânea do antissemitismo: o antissionismo, a pregação contra a existência e a legitimidade do Estado judeu".

Afirmar, nas palavras do articulista, que a ONU "demoniza o Estado judeu"? Acusar a União Europeia de antissemitismo? Em que mundo vivem o presidente da Conib e os que pensam como ele?

Supõem que a esta altura da história do mundo, em pleno século 21, a opinião pública mundial e 192 dos 193 países que compõem a ONU estejam acometidos de um surto destrutivo contra um membro específico da organização, um país, cujos méritos e êxitos são universalmente reconhecidos e com o qual a maioria dos países-membros mantém relações amistosas e de interesse comum? É levar a coisa longe demais, ou não?

O problema do presidente da Conib é o mesmo da maioria dos eleitores de Donald Trump. O eleitor de Trump é um indivíduo que tem vergonha de dizer que nele votaria. Por isso não foram identificados pelas pesquisas de opinião, com os conhecidos resultados.

O presidente da Conib e seus seguidores dissimulam da mesma forma a verdadeira razão pela qual acreditam que Israel esteja acima do bem e do mal. São fundamentalistas, creem que Israel deve sua existência a um desígnio de Deus, conforme inscrito na Bíblia. E encobrem essa crença por meio de afirmações dogmáticas ou ilações simplistas.

Dentro e fora de Israel são muitos os críticos dessa política que consideram extremamente danosa ao povo judeu. É pensando no futuro e bem-estar do Estado de Israel que condenam as barbaridades praticadas pelo governo Netanyahu contra um povo com o qual os israelenses estão fadados a conviver.

Não nos parece que, com isso, estejam isentando os palestinos das suas enormes responsabilidades na solução do conflito. As obrigações com a construção da paz devem ser comuns aos dois povos.

Fundamentalistas judeus, cristãos ou muçulmanos são essencialmente iguais, como um dos mais eminentes pensadores israelenses enfática e agudamente analisou. Yeshayahu Leibowitz (1903-1994), judeu ortodoxo e sionista, cientista e filósofo, acreditava que a mistura do Estado com a religião corrompesse a fé.

Para Leibowitz, é precisamente a compreensão do Estado como uma instituição secular que impede que se cometam atrocidades morais em nome da religião, uma vez que julgaremos corretamente essas ações --ou seja, moralmente, não religiosamente.

É na atribuição de santidade às coisas profanas, ao mundo natural e às nossas necessidades e interesses humanos que está a raiz de tudo o que Leibowitz critica na religião e que acarreta terríveis consequências políticas e morais na política contemporânea.

Nenhuma nação tem, a priori, direito a qualquer terra, pensava Leibowitz, que se opôs veementemente à ocupação dos territórios invadidos à revelia da ONU.

A partilha da Palestina em 1947, que gera o Estado de Israel, foi antes uma realização das Nações Unidas que dos judeus. É imperioso que Israel se submeta ao âmbito da ONU para chegar a uma solução satisfatória da questão palestina. Apostar junto com os EUA no fim da cooperação multilateral arduamente construída ao longo de sete décadas constituirá um retrocesso desastroso para todo o mundo.

Jom Tob Azulay

Diplomata e cineasta; diretor, entre outros, de "O Judeu" (1996)

Gilberto Gil

Cantor, compositor e ex-ministro da Cultura (2003-2008, governo Lula)

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