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Sergio Segall

Minha mãe, uma mulher do século 20

Beatriz Segall abriu caminho às mulheres de hoje

Sergio Segall, primogênito de Beatriz Segall, em jantar em comemoração aos 90 anos da atriz, em 2016
Sergio Segall, primogênito de Beatriz Segall, em jantar em comemoração aos 90 anos da atriz, em 2016 - Bruno Poletti - 29.jul.16/Folhapress

Minha mãe se foi. Beatriz Segall, 92 anos de uma longa e bem vivida vida, uma das grandes damas do teatro brasileiro, uma mulher do século 20. Filha de professores secundaristas conservadores, estudou letras, foi professora de francês, mas queria mesmo era ser atriz.

Contra a vontade de meus avós, no fim dos anos 40, conseguiu uma bolsa de estudos e foi para a França. Já era uma mulher de ambição, queria conquistar o mundo. Foi lá que conheceu meu pai, Mauricio Segall.
Quando voltou ao Brasil, começou a atuar e assim o fez até meu nascimento, em 1956. Como ela era ainda uma mulher do século 20, parou de trabalhar para cuidar dos filhos --eu, Mario e Paulo.

Em 1967, meu pai e ela, junto com Fernanda Montenegro e Fernando Torres, arrendaram o teatro São Pedro, na Barra Funda, em São Paulo, e deram origem ao grupo teatral São Pedro. Minha mãe voltou a atuar.

Logo em seguida, porém, veio o AI-5, que radicalizou a ditadura no Brasil. Ainda hoje me lembro de todos aqueles grandes nomes do teatro, no palco do São Pedro, no meio de um ensaio interrompido, ouvindo pelo rádio a leitura do famigerado ato, conscientes de que a peça que ensaiavam já estava condenada e seria proibida. Fernando chorava, Fernanda parecia assustada, Guarnieri ficou a um canto cabisbaixo, perdido e confuso. Ainda hoje recordo o silêncio profundo daquele momento.

Pouco depois, meu pai foi preso, e minha mãe se viu obrigada a cuidar do teatro sozinha, enfrentando ameaças, a censura e as dificuldades financeiras. Aqueles foram tempos em que ela foi mesmo uma mulher do século 20. Teve que reunir coragem para tocar o trabalho, cuidar dos filhos sozinha, tudo isso enquanto tentava defender meu pai e tirá-lo da cadeia.

Quando os anos 70 chegaram ao fim, minha mãe se separou de meu pai. Creio que ela queria respirar novos ares, viver a democratização que chegava, fazer outros teatros e, como toda estrela sempre deseja, conquistar o grande público.

Foi quando ela conseguiu um espaço na Globo. Aos 50 anos, era uma atriz pouco conhecida. Como toda principiante numa grande organização, teve que aceitar sua condição de subalterna e lutar. Mas não tardou a se impor e acabou por fazer novelas icônicas, como "Dancing Days" e "Vale Tudo", na qual acabou por interpretar sua personagem mais famosa, Odete Roitman. Ela tinha enfim, virado uma estrela!

No teatro, que permaneceu sua grande paixão, produziu e atuou em grandes textos e com grandes diretores, deixando saudades com "Emily", "Três Mulheres Altas" e tantas outras peças. Grandes autores foram encenados por ela, como Shakespeare, Brecht, Tchekhov, Ibsen, Tennessee Williams, Dürrenmatt, Albee, Guarnieri, Vianinha, Plinio Marcos etc. Nunca se furtou a tomar posição nas grandes questões culturais e políticas do Brasil. Foi uma mulher de opiniões fortes.

Seu último trabalho foi em "Nine, Um Musical Felliniano". No dia de seu 89º aniversário, quando se preparavam os colegas para uma homenagem nos aplausos finais, ela, ao agradecer, tomou um tombo, se estatelou no centro do palco e teve que ser socorrida em um hospital.

Para muitos, foi triste e melancólico. Mas para mim foi glorioso porque minha mãe, esta mulher do século 20, que fez sua parte para abrir caminho às mulheres do século 21, trabalhou até o fim, até não aguentar mais. Literalmente! E, quando aconteceu, aconteceu como tinha de acontecer com uma grande atriz do teatro. Não foi em casa, nem na privacidade do seu quarto. Foi em cena aberta, em grande estilo! Assim foi minha mãe, minha mãe que se foi.

Sergio Segall

Diretor de cinema, empresário e filho mais velho de Beatriz Segall

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