Descrição de chapéu
Carlos Fernando dos Santos Lima

O descaso como epitáfio

Museu Nacional não era depósito de coisas antigas

Em uma época em que fatos históricos são negados e que se busca apenas a mentira efêmera das fake news, a tragédia do Museu Nacional, consumido pelas chamas até restarem somente paredes carbonizadas, serve de alerta a todos nós sobre o processo contínuo que enfrentamos de perda de nossa memória, do conhecimento de nossa realidade e do país que desejamos para o futuro.

Aquele palácio não era simplesmente um depósito de coisas antigas ou um museu de história natural. Ele também não era apenas paredes, como querem fazer crer nossos políticos quando repetem que a perda será reposta.

O Palácio da Quinta da Boa Vista, que quando criança visitei maravilhado, representava nossa história mais do que qualquer outro lugar, pois possuía um acervo nosso, com peças únicas e sobreviventes da fuga da corte imperial e das tormentas do oceano Atlântico.

A perda dessa memória é irrecuperável, dela restando apenas vestígios em fotos de arquivo. O que era um monumento de nossa história transformou-se em uma lápide cujo epitáfio é o nosso descaso.

Mas aquele palácio representava também as nossas contradições como país, das relações espúrias que desde cedo se formaram entre a esfera pública e a privada. O Palácio Imperial, originalmente a residência de um rico mercador de escravos, foi dado por este a dom João 6º para se tornar residência da família real.

Esse mercador de escravos, o português Elias Antônio Lopes, ao presentear o imperador que chegava ao Brasil fugido das tropas napoleônicas, angariou assim as simpatias do monarca e alcançou diversos benefícios na estrutura do governo que se instalava, inclusive o de arrecadar impostos. Ou seja, desde cedo em nossa história o interesse privado impôs-se ao interesse público pela confusão patrimonial e familiar entre aqueles que detêm poder.

E essa apropriação do interesse público pelo interesse privado é a raiz do processo de corrupção, inclusive de valores, que vivemos hoje. Ela explica não somente o descaso com nossa história, mas todo o processo demagógico de escolhas de políticas públicas, pelas quais os recursos públicos tirados de quem produz são direcionados para a preservação de castas políticas, seja pelo processo de corrupção pura e simples, seja pela consecução de políticas demagógicas de pão e circo.

Somente percebendo esse fenômeno é que podemos entender como em um país que nos últimos dez anos perdeu tesouros culturais e científicos em pelo menos oito incêndios (Teatro Cultura Artística, Instituto Butantan, Memorial da América Latina, Museu de Ciências Naturais da PUC/MG, Centro Cultural Liceu de Artes e Ofícios, Museu da Língua Portuguesa, Cinemateca Brasileira e Museu Nacional) tenha destinado, no mesmo período, bilhões para estádios de futebol e obras desnecessárias e inacabadas. 

Isso acontece porque nossa classe política prefere a carnavalização dos anúncios de obras espetaculosas, feitas sem projeto e com "contas de padeiro", que são usadas não só como material para demagogia eleitoral, mas principalmente como fonte de recursos ilícitos.

Para nossos governantes, mais vale uma obra desnecessária que saúde, saneamento, educação ou segurança. Demagogia e corrupção são irmãs siamesas que nascem desse matrimônio espúrio do patrimonialismo de nossa elite política e do alto custo de nossas campanhas eleitorais. Para combatê-las é preciso restaurar valores democráticos e republicanos, pois a demagogia e a corrupção não somente matam, mas queimam até o chão nossa memória e esperança.

Carlos Fernando dos Santos Lima

Procurador regional da República e ex-membro da força-tarefa da Operação Lava Jato

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