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Maria Rita Kehl

Você tem medo de quê?

Agressor de Bolsonaro pode ter sido estimulado por ódio

Maria Rita Kehl

​Os rivais de Jair Bolsonaro na disputa presidencial prontamente desaprovaram o atentado cometido por Adélio Bispo de Oliveira no último dia 6. Foram corretos ao expressar solidariedade ao colega/rival. Seria péssimo para o país se incentivassem os cidadãos indignados com a prisão arbitrária do ex-presidente Lula a fazer justiça com as próprias mãos. Apenas Ciro Gomes ousou afirmar o que muita gente pensa: "Bolsonaro representa um risco" para o Brasil.

É lamentável, mas não incompreensível, que um jovem pobre, negro, vítima de algum tipo de deficiência mental, tenha atentado contra a vida de Bolsonaro.

O possível diagnóstico de paranoia faz lembrar o verso de "Paranoia", de Waly Salomão, para a música de João Bosco: "paranoico é quem descobriu ser perseguido". Talvez Adélio Bispo tenha sofrido com a fantasia, nem tão irreal assim, de se tornar vítima potencial da metralhadora giratória do candidato.

Teria agido por ódio: cometeu um crime. Por medo, talvez, do vale-tudo que vigora no país, desde o impeachment de Dilma Rousseff, condenada por um Congresso do qual fazia parte um deputado —e então presidente da Câmara— que hoje está preso. Ou desde a prisão do presidente Lula, incomunicável em Curitiba como se representasse perigo para o país. Qual perigo?

Lula responde: "Se me prenderem viro herói; se me matarem, viro mártir; se me soltarem, viro presidente..."
Acrescente-se que talvez Bispo tenha levado a sério a incitação ao ódio praticada (impunemente, diga-se) em atos de campanha pelo próprio Bolsonaro.

Um candidato a presidente de todos os brasileiros que se permite fazer pose de matador de petistas, usando um tripé de cinegrafista como "metralhadora", ameaça nosso frágil Estado de Direito. Nesse caso, Bispo teria razão. No mínimo, se Bolsonaro não pretende fazer o que promete ("foi brincadeira", afirmou aos jornalistas...), deveria ser responsabilizado pela violência que incentiva. E por quebra de decoro. Mas a bravata ficou por isso mesmo.

O Judiciário que condenou Lula é conivente, por 3 a 2, com o avanço de uma candidatura cuja plataforma assenta-se sobre o ódio disseminado contra uma parcela significativa da população --negros, gays, petistas.

A Câmara dos Deputados também ignorou a quebra de decoro de Bolsonaro contra a deputada Maria do Rosário, quando afirmou que só não a estupraria "porque ela não merece". Como se alguma mulher merecesse. Ou devesse se sentir honrada ao ser estuprada por homem tão...valente?

A impunidade da violência verbal de Jair Bolsonaro, concedida pelo Congresso e pelo Judiciário, nos faz temer que a luta sem lei de todos contra todos (com evidente vantagem dos mais violentos) esteja liberada no Brasil.

O candidato do PSL à Presidência da República parece sentir-se bem tranquilo em relação às liberdades que toma.

No leito do hospital, fez-se fotografar em pose de pistoleiro, apontando os dedos das duas mãos como uma criança que brinca de cowboy --com o agravante de que não se trata de uma criança, e sim de um político que pretende governar o país.

E não se pode dizer que ele minta em campanha; seus gestos e frases destemperadas revelam com clareza o tipo de governo que pretende implantar, caso seja eleito.

O sofrimento que levou Adélio Bispo a seu ato criminoso não é alheio a muitos outros brasileiros que vivem na franja inferior da sociedade de direitos. O ódio pode ter motivado seu crime. Ou o medo --o mesmo que muitos eleitores também sentem, diante do vale-tudo que vigora hoje na política brasileira, a pretexto de eliminar petralhas.

Adélio Bispo cometeu um crime e, também, uma burrice. Contribuiu para transformar um defensor do estupro e da violência em vítima. Mas o rapaz vai pagar por seu crime --o que é justo. Ou não? Afinal, o crime que cometeu é do mesmo tipo que sua vítima alardeia. Em campanha presidencial. Impunemente.

Maria Rita Kehl

Psicanalista, ex-integrante da Comissão Nacional da Verdade; autora de "Bovarismo Brasileiro" (Estação Liberdade)

Erramos: o texto foi alterado

Este texto dizia erroneamente que o presidente do Congresso à época do impeachment de Dilma Rousseff está preso hoje. A referência era a Eduardo Cunha, então presidente da Câmara. No Brasil, cabe ao presidente do Senado o papel de chefe do Congresso. A informação foi corrigida.

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