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Umberto Andrade

Ouvir o 'Grande Mudo'

Convivência de militares e civis criou laço de respeito

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Comandantes das Forças Armadas em evento com o presidente Michel Temer, em Brasília, em abril - Pedro Ladeira - 11.abr.18/Folhapress

Em 31 de março de 1964, José Murilo de Carvalho foi surpreendido com o golpe militar que depôs o governo João Goulart, que contava com apoio popular e político. Manifestações nas ruas foram entendidas como resposta à aposta em temas controversos, como reforma agrária, nacionalismo e luta de classes.

O historiador registra a falha dos analistas políticos, incapazes de entender as mudanças por que passaram tão importante ator político. Há uma trajetória de transformações do nascimento do intervencionismo reformista, na era Hermes da Fonseca, até o fim do Acordo Militar Brasil-EUA, com Ernesto Geisel.

Passado mais de meio século, poucos políticos são capazes de percorrer o caminho do historiador e reconhecer que organizações possuem características e vida própria, não podendo ser reduzidas a reflexos de influências externas.

Isso é particularmente verdade nas Forças Armadas: além de sua grande complexidade, são também instituições totais, ao envolverem todas as dimensões da vida de seus membros, segundo Erving Goffman.

Recentemente um ministro da Defesa declarou estranheza por nunca ter recebido pedidos para influir na promoção de generais, demonstrando desconhecimento. A mesma ignorância surge na autocrítica de próceres do antigo governo que lamentam não ter influenciado nas escolas militares.

O oficial de Estado-Maior Góes Monteiro sugeria que, nas lutas políticas, o Exército não devia passar do Grande Mudo. Essa neutralidade foi exigida na era Geisel, cuja ascensão resultou da combinação de elementos com que militares concebem a legitimidade política na corporação: reputação profissional, personalidade e posição hierárquica.

A reputação é construída ao longo da carreira por avaliações contínuas de superiores e colegas. A ética militar tem princípios cultuados pelo exemplo, como respeito à dignidade humana, cumprimento de ordens legais e penhor do sacrifício da própria vida --valores que envolvem a vida dos membros, de novo Goffman.

O militar profissional e disciplinado pós-64 é efeito do aperfeiçoamento de suas escolas. Para sobreviver ao aperto dos anos 90, as Forças Armadas elegeram as escolas como área de excelência, e estas tornaram-se modelos de gestão na área de ensino: Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA), Instituto Militar de Engenharia (IME), Escola Naval e Academia Militar das Agulhas Negras (Aman).

Há um sistema monolítico na formação do oficial que ensina princípios e valores próprios da nação.

Entretanto, as escolas superiores militares se abriram, de modo genuinamente democrático, para a formação de civis, inclusive políticos, capacitando-os a formular políticas alternativas para o setor.

Como ressalta Carvalho, é preciso reconhecer que militares fazem enorme esforço para se capacitarem em assuntos tradicionalmente civis desde os anos 30. A convivência entre civis e militares criou hábitos de cooperação intelectual, laços de camaradagem e respeito.

Se a guerra é importante demais para ser deixada aos militares, como afirma Clemenceau, também é importante demais para ter ingerências indevidas de civis. As táticas se tornaram mais eficientes, menos sangrentas, e o planejamento estratégico, impositivo. A França resistiu à ocupação de um general, enquanto a Inglaterra venceu a guerra conduzida por um civil. Exércitos modernos são hoje muito influenciados por Clausewitz, que definiu a guerra como a continuação da política por outros meios.

A violência continua a ser a última razão dos reis, mas a negociação, própria do político, sempre será a via preferencial para evitar a guerra.

Umberto Andrade

General de brigada e presidente da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (Adesg); Ph.D. pela Universidade da Califórnia, em San Diego

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