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Hebe Mattos

E o Brasil escolheu...

Classes privilegiadas assumem ódio como bandeira

O presidente eleito, Jair Bolsonaro, em encontro com governadores recém-eleitos, em Brasília - Sergio Lima/AFP
Hebe Mattos

Após o golpe parlamentar de 2016, anti-intelectualismo e fundamentalismos diversos, que estão na base de uma nova extrema direita de abrangência global, rapidamente tornaram-se preponderantes na base de apoio do governo Temer.

Desde antes disso, vinham-se mostrando presentes em setores do Judiciário, numa preocupante politização dos operadores de Justiça, exemplarmente ilustrada pelas ações de cerceamento às universidades que precederam o segundo turno das eleições, a tempo declaradas inconstitucionais pelo STF.

O crescimento da extrema direita foi a grande surpresa eleitoral do primeiro turno, que se confirmou com a vitória do atual presidente eleito, no segundo. Como explicá-lo?

Facebook e WhatsApp assumiram que houve roubo de dados e uso de robôs em suas plataformas no primeiro turno das eleições no Brasil. Podem ter amplificado preconceitos que ajudaram a reverter tendências históricas de parte do eleitorado, sobretudo das classes populares. Mas não os inventaram.

Muitos apontam a circulação de notícias falsas em aplicativos e redes sociais como sintoma de nossa entrada na era da pós-verdade, caldo de cultura no qual o chamado novo "populismo de direita" seria criador e criatura. O fenômeno é mais complexo. As redes sociais democratizam as comunicações. As chamadas fake news apenas amplificam preconceitos, antes invisíveis, que passam a ter espaço no debate público.

Se houve suposto impulsionamento ilegal e direcionado dessas mensagens, o problema a se combater, nas redes ou na imprensa tradicional, é o mesmo: monopólio da informação e abuso de poder econômico.

Mais surpreendente, para mim, foi ver quase a totalidade das classes médias brancas e letradas do centro-sul do Brasil abraçar, com entusiasmo, a violência como valor (o gesto de atirar no inimigo, como símbolo).

Desde o surgimento do país como monarquia liberal e escravista, a hipocrisia, entendida como o elogio que o vício presta à virtude, constituiu-se como principal alicerce do nosso preconceito de ter preconceito e do mito da democracia racial entre nós, como nos ensinou Florestan Fernandes.

As transformações socioculturais dos últimos 30 anos parecem ter provocado uma mudança nesse traço essencial da cultura política brasileira, de consequências imprevisíveis.

É sempre importante ouvir a voz das urnas. Mesmo quando o voto do vizinho nos causa horror. Em um país racista, ainda profundamente marcado pela herança escravista nas relações sociais, que sempre autorizou o genocídio cotidiano de jovens pretos e da população LGBT nas periferias, uma parte expressiva do eleitorado das classes privilegiadas assumir o ódio como bandeira política faz sentido, ainda que seja absolutamente assustador.

Preconceito e cinismo emergiram vitoriosos e sem véus dessa eleição. Para superá-los, será preciso encarar feridas abertas, sempre presentes em nossa sociedade, que insistimos em não olhar. Será arriscado e doloroso, muito se pode avançar no autoritarismo dentro da ordem democrática, mas precisamos acreditar que a sociedade brasileira e os valores fundamentais da República de 1988 sejam capazes de resistir e dar conta da tarefa.

Hebe Mattos

Professora titular da Universidade Federal de Juiz de Fora e de história do Brasil da Universidade Federal Fluminense; coordenadora do Laboratório de História Oral e Imagem, da UFF

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