Descrição de chapéu
Milly Lacombe

Polarização pelo avesso

Quero crer que eleitores de Bolsonaro sejam justos

A jornalista e escritora Milly Lacombe, roteirista do programa Amor&Sexo - Greg Salibian - 23.jun.18/Folhapress
Milly Lacombe

Chamam de prudente a mulher que não desafia as regras e se conforma. Chamam de prudente a mulher que abdica da própria vida, do seu erotismo, e do seu tesão. Chamam de prudente a mulher que não insiste e desiste. Chamam de prudente a mulher que diz não quando quer dizer sim, e diz sim quando quer dizer não. Não importa a nossa vontade, importa apenas a nossa prudência. 

Para não levar a fama, evitamos deitar na cama. Vamos então acatar esse sistema de opressão; vamos acatar esse sistema machista, racista, patriarcal, misógino e homofóbico. Vamos resgatar das fogueiras as camisas de força da opressão, da tirania e da repressão. Vamos nos aprisionar, todas nós e todos vocês que ousaram não ter prudência. A luta foi em vão, chegou ao fim. Preparem-se: a nossa voz foi calada. Bora acatar tudo isso?

O trecho acima é uma inversão do discurso que a apresentadora Fernanda Lima fez ao final do programa Amor&Sexo no último dia 6. 

Fernanda vem sendo atacada pelo texto original, interpretado como uma afronta direta ao presidente eleito. Num rápido exercício de lógica invertida, cabe a pergunta: a quem o trecho acima, todo invertido, agradaria?

À direita ou à esquerda? Aos mortadelas ou aos coxinhas? À democracia ou à ditadura? Poderíamos, seguindo a argumentação, dizer que o discurso invertido agradaria ao presidente eleito? Não posso acreditar que sim.

Porque o presidente eleito declara ser um homem honrado, e quem votou nele acredita em valores morais sagrados. Eleitores que compartilham de princípios éticos nobres não poderiam discordar daqueles que desejam "sabotar esse sistema de opressão", como disse Fernanda em seu discurso original.

Muito menos discordar daqueles que querem acabar com um "sistema homofóbico, racista, patriarcal, machista e misógino", como a apresentadora pediu em seu manifesto. Também não acredito que o honrado eleitor de Bolsonaro discordaria do "jogar na fogueira as camisas da submissão, da tirania e da repressão" --nas palavras de Fernanda; afinal, todos eles são honrados, e discordar dessas palavras seria se colocar a favor dessa trinca que tanta dor causa a tanta gente: a submissão, a tirania e a repressão.

Acho igualmente difícil imaginar que o estimado eleitor do presidente seja contra "libertar todas nós e todos vocês", como cantou Fernanda. Então, o que podemos pensar daqueles que interpretam o manifesto de Fernanda como uma crítica ao presidente? O que podemos pensar daqueles que se opõem a uma crítica ao racismo? Que se opõem ao combate do machismo? Que vociferam contra o fim da homofobia?

É bastante triste imaginar que o presidente e seus eleitores sejam contra valores tão humanos e inclusivos como os do discurso da apresentadora.

Quero acreditar que o presidente e seu eleitor sejam pessoas honradas, democráticas, justas e comprometidas com a luta dos excluídos, e que por isso concordam com o conteúdo do discurso da apresentadora. Será que estou enganada? Só o tempo dirá.

Milly Lacombe

Roteirista do programa Amor&Sexo (TV Globo), colunista da revista Trip e autora do romance "O Ano em Que Morri em Nova York"

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