Descrição de chapéu
Alberto Tassinari

Eu não acuso

Estamos atolados num passado que não passa

Livro "Anos de Chumbo: O Teatro Brasileiro na Cena de 1968", de Quartim de Moraes. Tanques ocupam a avenida Presidente Vargas, no Rio de Janeiro, em 4 de abril de 68
Tanques ocupam a avenida Presidente Vargas, no Rio de Janeiro, em 1968, meses antes do AI-5 - Wikicommons
Alberto Tassinari

Do Brasil se diga: nosso maior déficit é ético. Não é fiscal. Não é nem sequer político. O último recurso, e primeiro, é o diálogo. Ou, no fim das contas, a guerra. Mas a política como guerra, como jogo de forças, não é diálogo. Se não há diálogo, não há ética. Nosso maior déficit é ético. Não é fiscal. Não é nem sequer político.

Nossa Constituição diz: a República Federativa do Brasil se funda na dignidade da pessoa humana. Artigo primeiro. Inciso III. E na pluralidade política. Artigo primeiro. Inciso V. Mas nosso pluralismo político atual é a dignidade humana de uns contra a de outros.

Há mais do que uma, apenas uma, e só uma, dignidade humana então? Nosso principal déficit é ético. Não é fiscal. Não é nem sequer político.

Não temos, tememos, não ter futuro hoje. E não temos porque estamos atolados num passado que não passa. Nas senzalas por todos os lados. Nos genocídios que nem sequer admitimos de nossos povos de origem. Temos passado de mais. Não de menos. Não somos sem memória, como dizemos. Ela está nas coisas, no mundo, nem é preciso lembrar. Memórias terríveis. Na carne de cada um. Nosso principal déficit é ético. Não é fiscal. Não é nem sequer político.

Num passado que não passa, o presente nasce todos os dias arruinado. Sem presente fecundo, não há bom futuro. E nosso terrível passado não passa. E, quando passaria, retorna. Foi assim com o AI-5. Foi assim em tantos momentos. Tememos que seja novamente. Nosso principal déficit é ético. Não é fiscal. Não é nem sequer político.

Por que retornas? Por que não passas, passado? Por que não somos plurais quando partidários e ao mesmo tempo únicos quanto à dignidade humana? Por que quando tomamos partido somos donos da dignidade humana do outro que não somos? Nosso principal déficit é ético. Não é fiscal. Não é nem sequer político.

Tomar partido é estar sob a guarda do programa de todos os programas políticos: nossa Constituição. Que patriotismo alardeado pode haver se não for de todos, se não for de uma só dignidade humana, de uma única Constituição democrática que nos protege? Nosso maior déficit é ético. Não é fiscal. Não é nem sequer político.

Alberto Tassinari

Crítico de arte, doutor em filosofia pela USP e autor de "O Espaço Moderno" (Cosac Naify, 2006)

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