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José Ruy Lozano

Literatura infantil não é arma de disputa política

À esquerda ou à direita, deixem os livros em paz

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O professor José Ruy Lozano, em seminário na Folha, em 2016 - Eduardo Anizelli - 27.jun.16/Folhapress

No mundo medieval, florestas representavam perigo: bandoleiros e salteadores roubavam os viajantes que se aventuravam a transitar incautos em certos trechos. Já o campo era lugar de pobreza: o sofrimento dos trabalhadores rurais ficava patente nos rostos de órfãos e viúvas, que penavam para sobreviver.

Florestas, órfãos e viúvas povoam, ao lado de castelos, príncipes e princesas, os contos infantis mais conhecidos do Ocidente. Tais narrativas são portadoras de valores culturais, sociais e políticos, construídos historicamente.

A obediência aos mais velhos (mamãe mandou não entrar na floresta, Chapeuzinho Vermelho entrou e deu errado); a idealização da monarquia e da vida na corte (a menina pobre que se casa com o príncipe sempre perfeito); a esperteza e os ardis dos desvalidos (João e Maria, órfãos, têm de enganar a bruxa para dar a volta por cima); imagens e ideias que se projetam nas histórias para crianças.

Não se devem, portanto, abstrair intencionalidades político-pedagógicas da literatura infantil. Ela sempre as abraçou. Identificar e debater esses propósitos nos planos cultural e intelectual difere muito do que ocorre na sociedade brasileira hoje. Os livros para crianças foram arremetidos à dinâmica obscurantista de um discurso com fins eleitoreiros, que denuncia permanentemente a suposta doutrinação ideológica perpetrada por algumas obras.

Políticos e movimentos alinhados à direita do espectro político são os novos inquisidores a brandir o índex de livros perigosos. Textos de educação, em geral, e livros infantis, em particular, atiçam a sanha dos Torquemadas de plantão. Desde publicações informativas até narrativas ficcionais estão no alvo de agentes políticos dessa estirpe.

Vê-se catequese esquerdista em narrativas que tematizam o combate ao bullying ou o protagonismo dos negros na história, por exemplo. Se personagens masculinos e femininos aparecem sem obedecer a estereótipos, trata-se da veiculação de ideias de um complô homossexual em escala planetária.

Vale lembrar que, em outros tempos e lugares, o desprestígio e a condenação moral ameaçaram também os "machos europeus, brancos e mortos", eventualmente banidos de escolas e universidades por Savonarolas da esquerda, como vozes da opressão racista e sexista.

É preciso recordar também a história de nossa literatura infantil, a começar por seu fundador, Monteiro Lobato, ele mesmo vítima, em passado recente, de acusações de racismo e ameaças de banimento --perpetradas pelo lado oposto do balcão ideológico. Lobato criou Emília, a boneca rebelde, inquieta e questionadora, que duvidava das certezas dos homens e do mundo. Ela é a melhor resposta contra a intolerância.

Que deixem os livros infantis em paz. Eles não são armas de combate eleitoral.

José Ruy Lozano

Sociólogo e autor de livros didáticos, é membro da Comunidade Reinventando a Educação (coreduc.org)

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