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Mario Jorge Tsuchiya

A resolução do CFM sobre telemedicina deve trazer avanços à saúde do país? NÃO

Saúde não é filme de ficção

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Recentemente, o Conselho Federal de Medicina (CFM) surpreendeu ao divulgar a resolução nº 2.227/18, que trata de diretrizes sobre a telemedicina no Brasil. De acordo com essas novas normas, "os médicos brasileiros poderão realizar consultas online, assim como telecirurgias e telediagnósticos, entre outras formas de atendimento".

Para os conselheiros do CFM, entre os benefícios da nova medida está a possibilidade de "levar saúde de qualidade a cidades do interior do Brasil, que nem sempre conseguem atrair médicos", além de supostamente beneficiar grandes centros, ao reduzir o estrangulamento no sistema convencional causado pela grande demanda.

Focado na categoria mais vulnerável da população, que já carece de tantos serviços básicos para "sobreviver", o texto propõe, entre outras atividades à distância, que cidadãos moradores de áreas isoladas ou regiões sem a presença do médico tenham acesso a um atendimento via celular ou computador.

Reflitamos: considerando o simples fato de que uma teleconsulta pode gerar inúmeros problemas, tanto para médicos como para pacientes --seja por diagnósticos equivocados ou vazamento de informações confidenciais, entre tantas consequências negativas--, é preciso uma estrutura tecnológica impecável para pôr em prática tal proposta.

Onde ainda reinam antenas parabólicas, espera-se a disponibilidade de tablets e telefones celulares de última geração?

Pesquisa do IBGE de 2018 revelou que 1) só 43,6% das pessoas com nenhum grau de escolaridade possuíam um aparelho móvel em 2016; e 2) entre pessoas com mais de 60 anos, o índice de uso de aparelhos celulares chegava a apenas 60,9%, devido ao grau de dificuldade que esta faixa da população tem para lidar com tecnologia.

Além disso, há que se considerar que em diversos municípios o acesso à internet ainda é precário. As populações mais distantes e mais necessitadas nem sequer possuem um celular em casa, que dirá um smartphone com internet de boa qualidade!

É preciso analisar a saúde do país sob um ângulo mais amplo e atento às discrepantes realidades locais. A tecnologia tem revolucionado a existência humana, em todas as áreas, e não poderia ser diferente na medicina e na saúde. Mas estas requerem cuidados especiais, dadas as suas peculiaridades, e uma estrutura de trabalho compatível.

As novas gerações de médicos precisam estar preparadas para atender melhor seus pacientes, com diagnósticos cada vez mais precisos e terapias específicas, e esses são fruto de uma boa anamnese, do cuidadoso exame físico, da indicação da conduta correta e de um acompanhamento evolutivo.

A proposta do CFM surge mais como uma pretensa cura para uma área que, há décadas, agoniza em nosso país: a saúde. Se atentarmos à proposta, ela agirá como um placebo e poderá causar danos irreversíveis, além de onerar o sistema público com intervenções mais complexas e decorrentes de diagnósticos equivocados, por exemplo.

A saúde brasileira está doente. Ao observarmos propostas como essa, explicitada pela resolução 2.227/18, corremos o sério risco de deixarmos de contribuir com a missão que nos cabe: lutar por condições dignas de trabalho e cuidar, com responsabilidade, do ser humano. Por isso, antes de falarmos em consultas virtuais ou definirmos "áreas remotas", precisamos olhar nossos hospitais, nossos médicos e outras demandas sociais basais.

Mario Jorge Tsuchiya

Médico, é professor do Departamento de Medicina Legal, Ética Médica, Medicina Social e do Trabalho da Faculdade de Medicina da USP

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