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Valdinei Ferreira

Ernesto, Damares e os dragões

Batalhas contra os monstros reais não começaram

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Valdinei Ferreira, líder da Igreja Presbiteriana Independente de São Paulo - Zanone Fraissat - 7.nov.18/Folhapress

Dragões povoam o imaginário cristão desde os primórdios. São Jorge é conhecido como matador de dragões. Pouco conhecida é a lenda a respeito de Santa Marta. Segundo a tradição cristã, Marta e seus irmãos foram para o sul da França e evangelizaram o vale do Ródano. Em Tarascon havia um dragão que aterrorizava o povoado e exigia o sacrifício de meninas. A ativista Marta domou o dragão e, depois de prendê-lo com seu cinto, enviou a fera de volta ao mar Mediterrâneo.

A temporada de caça aos dragões foi aberta com o novo governo. Os dragões são o socialismo, o globalismo, o feminismo, as migrações e a ideologia de gênero. Sejamos justos, pois governos petistas também tinham seus dragões: a direita, o neoliberalismo, as privatizações e a Lava Jato. Que governos elejam inimigos da pátria e criem narrativas de conspirações não é nenhuma novidade. O que há de novo é a entrada da retórica cristã na engrenagem do Executivo por meio dos ministros Ernesto Araújo, das Relações Exteriores, e Damares Alves, da Mulher, Família e Direitos Humanos.

Religiões operam no âmbito da convicção, por isso não se espera de pessoa religiosa que oculte suas crenças. Na língua grega, citada por Ernesto Araújo em seu discurso de posse, martureo, que significa dar testemunho, e martus, testemunha ou mártir, derivam da mesma raiz.

Espera-se de um cristão que dê testemunho de sua fé em todas as circunstâncias, inclusive naquelas que o conduzirem ao martírio. A sensação de mal-estar pela retórica desses ministros não provém da contundência das declarações feitas na esfera pública. Se não há nada de errado em ter convicções e menos ainda em expressá-las, qual é a razão do sentimento de mal-estar provocado pelas falas em questão?

A inadequação não está na convicção em si, mas na falta da percepção de que a posição social determina qual é o modo mais coerente de se sintonizar com o conteúdo da crença e transformá-la em palavras e atitudes. Daqueles que ocupam posições de poder político e se apresentam como cristãos espera-se que o testemunho (martureo) se dê numa atitude de serviço, escuta, gentileza e humildade. Esse discernimento é um desafio tanto para a religiosidade de inspiração nacionalista quanto para a evangélica triunfalista. Ambas são vivências religiosas do tipo ostentação.

Mas voltemos aos dragões reais: violência, crime organizado, corrupção, desigualdade, desemprego, privilégios dos altos escalões governamentais. De modo sóbrio, mas bastante contundente, os primeiros sinais de como esses monstros serão enfrentados foram dados pelos ministros Sergio Moro e Paulo Guedes. Enquanto as batalhas contra os verdadeiros dragões não começam, nosso Jorge e nossa Marta nos distraem com suas histórias.

Valdinei Ferreira

Doutor em sociologia (USP), é pastor da Catedral Evangélica de São Paulo (Primeira Igreja Presbiteriana Independente de São Paulo) e autor de ‘A bênção da vulnerabilidade: reflexões em templos de pandemia’

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