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Danit Pondé

Sobre o uso curativo de drogas alucinógenas

Usuário vai, mas volta rápido a estado de desespero

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Índio prepara folhas para chá de ayahuasca no Acre - Avener Prado - 9.mar.18/Folhapress
Danit Pondé

No que se refere à ideia do uso de drogas alucinógenas em tratamentos de ansiedades e depressões, o tema das drogas alcança outra esfera da que sempre esteve: alucinar é uma tentativa de escape.

No uso ancestral, as drogas alucinógenas eram um meio para um fim. Um portal sagrado para outra dimensão, de outra forma inalcançável, em que deuses, Deus ou ancestrais traziam entendimento para a labuta diária, para os sofrimentos que reconhecemos inerentes ao viver, independentes de sua datação.

Esse uso permaneceu desde há muito reduzido às bizarrices dos xamãs. Dentro dessa esfera, foi, quando muito, aceito por condescendência antropológica pelo establishment científico. Contudo, permanece totalmente não aceito no que se refere ao uso indiscriminado e paliativo por figuras perdidas, doentes ou no caminho de sê-lo que vagam no cenário urbano.

Nesse ponto surge, em gradativas ondas do discurso científico, a grande novidade. A partir de hoje, droga modifica comportamentos, provoca transformações em impasses ansiogênicos e depressivos, muda pensamentos; enfim, cura. O melhor de tudo isso: nada tem a ver com religião e transcendência. Você não encontra com ninguém. Apenas vive momentos relaxados e a dissolução de seu ego e pronto: vida nova.

As soluções fáceis sempre me espantam. E eu em meu trabalho de formiguinha no consultório, sustentando ou tentando estabelecer uma relação com os pacientes de forma a prover aquilo que de alguma forma não tiveram: o cuidado provindo de um ambiente suficientemente bom e saudável.

Segundo o psicanalista inglês Donald Winnicott (1896-1971), apenas desse modo relacional que se podem reverter quadros clínicos graves, uma vez que os vários tipos devem sua origem doentia às falhas ambientais. Não existem fenômenos psíquicos arbitrários nem mesmo se provam evidências eminentemente genéticas. Pelo contrário, ansiedades e depressões provaram-se associadas ao entorno social.

Se alguém ainda duvida, basta a observação do adoecimento generalizado ocorrido na época das eleições, pois muitos foram os que entraram em pânico, tiveram sintomas de ansiedade ou ficaram deprimidos sob a atmosfera crescente de insegurança neste contexto de embate nacional.

Como se quer provar, o novo uso da droga proverá tudo isso. Um mergulho sem ninguém, nem Deus nem humanos. Portanto, mais um produto em meio a tanta tecnologia de última geração, que persevera na ideia da autossuficiência. Outro desdobramento desmedido na linha da autoajuda, em que mais uma vez tende-se a cortar o mais essencial para a saúde humana: o relacionamento interpessoal. 

Pergunto-me o quanto de fato essa nova tecnologia médica guarda seus limites e ambivalência; aliás, como toda e qualquer tecnologia vendida como portadora de inquestionável solução. Afinal, as viagens alucinógenas são tão intensas como fugazes. O usuário vai, mas volta rápido ao seu estado de desespero. Assim como ele, os demais consumidores de outras drogas. O que é perene em toda essa experiência é o mal-estar e o ambiente que o circunda.

Mais uma vez lidamos com o perigo do vício em soluções rápidas, vendidas como infalíveis, que prometem resolver o mal, mas restritos à sua mera superfície.

Danit Pondé

Psicanalista, doutora em filosofia da psicanálise pela Unicamp, professora do IBPW (Instituto Brasileiro de Psicanálise Winnicottiana) e autora de "O Conceito de Medo em Winnicott"

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