Duas das recentes tragédias que abalaram o Brasil têm um denominador comum: armas de fogo. Parte da elucidação da execução da ex-vereadora Marielle Franco e de Anderson Gomes, em 2018, e a barbárie na escola Raul Brasil, em Suzano (SP), evidenciam a necessidade de rediscutirmos, organicamente, uma política de segurança pública, ações mais restritivas de acesso às armas de fogo e de repetirmos o referendo de 2005.
Nas investigações sobre o bárbaro assassinato no Rio, um sofisticado arsenal de fuzis foi apreendido na casa de um amigo do miliciano Ronnie Lessa, acusado de assassinar a vereadora. No massacre de Suzano, uma dupla de ex-alunos matou oito pessoas e feriu outras utilizando armas de fogo. O que conecta as duas tragédias é a facilidade do acesso às armas de fogo, ampliada pelo recente decreto presidencial.
As causas da violência são múltiplas e complexas. Vão da questão social, como desemprego, ao irresponsável jogo de transferência de responsabilidade entre os entes públicos, mas a banalização e flexibilizações no acesso às armas potencializam o problema. Ninguém tem a pretensão de solucionar a intricada questão da segurança pública só proibindo armas de fogo, mas a medida contribuiria para diminuir as nossas vergonhosas estatísticas.
As sistemáticas pesquisas de especialistas e acadêmicos quanto à relação direta entre o volume de armas em circulação e a violência são tão convergentes quanto eloquentes. Várias ferramentas criadas para outros fins podem matar: carros, facas, machados, aviões --liquidificadores, não--, mas apenas a arma é concebida e fabricada para matar.
Por isso, é imperioso que elas estejam restritas aos profissionais da segurança. O cidadão de bem não tem destreza no manuseio e sempre será o surpreendido. Com isso, ter arma não representa segurança. Ao contrário, aumenta o risco de morte.
Quando o Congresso se envolveu diretamente no tema, em 2005, o fez pelo viés mais democrático possível. Elaborou uma legislação, proibiu a venda de armas e munição e a subordinou à chancela popular. Por 64% a 36%, a sociedade optou pela continuidade da venda.
A campanha foi marcada pela desinformação e distorções propositais, em que o direito à propriedade, à liberdade individual foi deliberadamente confundido com o acesso às armas. A liberalidade no acesso atende apenas à ganância da indústria e dos mercadores da morte.
O Brasil não enfrenta guerras civis nem conflitos armados com outras nações, mas segue sendo o país com a maior taxa de mortes por arma de fogo. Há uma profusão de estudos e pesquisas com essa conclusão, e 17 cidades brasileiras estão num ranking inquietante entre as 50 mais violentas do mundo.
A cultura belicista, pregações de ódio, sanhas armamentistas, sites incentivadores e os preconceitos estimulam a violência no intuito de substituir a tolerância, a civilidade e a cordialidade que sempre marcaram o povo brasileiro. Precisamos cultivar a paz.
Como democrata, respeito o resultado do referendo realizado há 14 anos. O mundo mudou consideravelmente, e outros atores que fazem parte da sociedade estão aptos a discutir novamente a proposta.
Na reabertura do debate, que o façamos pelo lado bom, pela perspectiva de preservar vidas, como o Estatuto do Desarmamento o fez com números verificáveis. Afinal, como nos ensinou o menestrel Gonzaguinha, "ninguém quer a morte, só saúde e sorte".
As milícias da morte
Acesso a armas de fogo deve ser discutido de novo
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