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Karina Sainz Borgo

Venezuela: sobre a revolução e a velha febre do ouro

Toma forma a maior demolição cidadã de um país

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A jornalista e escritora venezuelana Karina Sainz Borgo, autora do livro 'Noite em Caracas' (ed. Intrínseca)
A jornalista e escritora venezuelana Karina Sainz Borgo, autora do livro 'Noite em Caracas' (ed. Intrínseca) - Lisbeth Salas/Divulgação

Ano 2000. Hugo Chávez estreava o primeiro dos 15 anos que permaneceu à frente da revolução, a Venezuela assistia à redação de uma nova Constituição e os jornais nacionais ilustravam suas capas com a foto de um grupo de indígenas pemones reunidos diante de um espelho. Muito concentrados com o reflexo, pintavam seus rostos pouco antes de entrar no semicírculo do Congresso, então a sede do poder constituinte. Todos haviam viajado do sul da Venezuela, esse lugar do qual são os assentadores ancestrais: um território rico em minas, álcool e tragédia que naqueles dias entrou nas campanhas eleitorais como “rio em Conuco”.

Tudo estava por ressurgir, ou assim o interpretaram alguns. Hugo Chávez prometeu fritar em óleo fervente as cabeças dos políticos tradicionais venezuelanos, garantiu que ninguém roubaria nunca mais, que tudo seria para o povo e que o país finalmente sonharia com um novo tempo. Ele também ofereceu coisas aos pemones, desde reparar os agravos históricos dos quais eles tinham sido objeto até reconhecer os títulos de demarcação de suas terras, situadas na fronteira com o Brasil, essa região onde se incuba a velha febre do ouro da qual o escritor Rómulo Gallegos falou em “Canaima” quase um século atrás. Nada era novo, mas parecia ser. Era o bastante.

Duas décadas depois, já não restam jornais independentes na Venezuela. Foram quase todos fechados, acossados por multas ou comprados por magnatas e testas de ferro da revolução. Os que ainda restam mal conseguem informar sobre os mais de 30 pemones abatidos pelas forças do Estado entre 23 e 24 de fevereiro de 2019. E menos ainda sobre os que morreram assassinados pelos militares quando os caciques daquela tribo acusaram Nicolás Maduro de converter o parque natural de Canaima em uma terra de sangue e destruição com seu projeto do Arco Mineiro, um plano de exploração das jazidas que foi executado pelos hierarcas sob a mira de revólveres. Os povoadores mais antigos do país desenterraram o machado de guerra guardado durante anos e se declararam em rebelião.

As jazidas minerais mais importantes da Venezuela ficam justamente no Escudo das Guianas, esse local envolto no mito de Canaima, uma expressão fundadora indígena e que dá nome ao parque natural. Nessa terra complexa —e às vezes obscura— o regime de Nicolás Maduro enxergou uma salvação diante da debacle financeira: uma fonte de ouro e diamantes para amenizar a bancarrota nacional.
 
Entraram nela a sangue e fogo, como o mais cobiçoso dos garimpeiros. Essas terras durante anos habitadas pelos pemones agora sofrem uma das maiores espoliações naturais e econômicas exercidas pelos mesmos que prometeram justiça e abundância. Obrigados a cooperar com a intimidação e a repressão militar, os pemones parecem o símbolo mais claro do que fez a revolução com suas promessas: as descumpriu.

Ninguém mais se lembra daquela foto dos pemones no Congresso. Já se passou tempo demais. A Venezuela continua governada pelo regime de Hugo Chávez através de um sucessor, Maduro, mas também completa quase 20 anos de controle cambial da moeda; a inflação passa de um milhão por cento, e a economia sofre um desabastecimento de mais de 90% de alimentos e medicamentos.
 
As cifras oficiais sobre as mortes violentas às mãos do crime não existem mais, porque o Estado não as divulga. Mas o Observatório Venezuelano da Violência, um organismo independente, divulgou uma lista de 26.244 homicídios —73 por dia— e um total estimado de mais de 350 presos políticos nos cárceres venezuelanos. Vinte anos se passaram, mas parecem mais de 20. A fronteira se tornou um lugar ainda mais perigoso, onde os povoadores históricos estão expostos a uma violência dupla: a do garimpo ilegal e a dos militares que pretendem explorar o Arco Mineiro à força.

A destruição é ainda mais profunda. Algumas semanas atrás entrou em colapso a central hidrelétrica do Guri, que fornece energia aos venezuelanos desde os anos 1970, aqueles anos de riqueza e petróleo do século 20. A falta de investimentos para manter uma represa situada no rio Caroní fez à represa o que o tempo faz com as obras públicas da democracia: a esburacou, a carcomeu, a apodreceu. O país inteiro ficou às escuras. Três dias se passaram, com suas três noites. Mais de uma centena de doentes morreu nos hospitais. A vida escoou no silêncio das máquinas apagadas. A comida, que já é escassa e custa cinco vezes o valor de um salário médio, estragou. Cada pôr do sol se converteu em um prazo descumprido. Desde então, o fornecimento de eletricidade é intermitente e escasso. Uma noite histórica tomou conta de um país que em certa época teve tudo.

Enquadrada entre o nascimento daquela Venezuela e a que agora arrisca seu futuro, toma forma a maior demolição cidadã que um país jamais pôde sofrer e da qual os pemones são a metáfora mais clara e dolorosa. A revolução sem petróleo recorre à velha febre do ouro. Aviltada e cega, move-se como aqueles homenzarrões fora da lei que atravessavam o Caroní pelo desfiladeiro de Caruache em “Canaima”, aquele romance em que Rómulo Gallegos retratou a barbárie de uma terra que nunca conseguiu fugir da febre que os obceca e embrutece, essa velha febre do ouro que a tudo arrasa, a tudo destrói.

Tradução de Clara Allain

Karina Sainz Borgo

Jornalista e escritora venezuelana, a autora do livro 'Noite em Caracas' (ed. Intrínseca) participará da 17ª Flip (Festa Literária Internacional de Paraty), em julho

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