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Paulo Pélico

A Serra Pelada dos artistas

Na nova Rouanet, maioria continuará do lado de fora

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O produtor teatral Paulo Pélico - Diego Padgurschi - 04.fev.09/Folhapress
Paulo Pélico

Em meados da década de 1980, cerca de 80 mil garimpeiros resolveram enfrentar o Exército, no interior do Pará, ante a notícia de que o governo militar decidira fechar o maior garimpo a céu aberto do mundo, conhecido como Serra Pelada.
 
Os mineiros revelaram tamanha determinação em defender o local que generais cancelaram a operação. De onde veio tanta disposição para a luta? O que concretamente aqueles mineiros temiam perder?

Bem, na prática não dispunham de muita coisa. A maioria só via as pedrinhas amarelas-foscas nas mãos de colegas sortudos, embora todos trabalhassem de sol a sol. Não ignoravam que muito tempo poderia passar antes que encontrassem vestígios do metal precioso, momento que talvez nunca chegasse. Ainda assim, reagiram pegando em armas. Por que se arriscar por algo tão ruim?
 
A resposta não é difícil. Para aqueles garimpeiros, o fim da Serra Pelada significava o fim da esperança. É certo que as condições eram miseráveis, mas tudo poderia mudar no próximo golpe do enxadão.
Algo semelhante ocorre na área artística ao redor da Lei Rouanet. Sempre que surgem notícias de mudança, o alarme soa. A classe se pinta para a guerra, como se alguém lhe tentasse arrancar algo, sem considerar que a maior parte dos artistas não tem acesso aos recursos.

É verdade, vez por outra, pingam gotas douradas de patrocínio sobre o setor, mas sem alterar a dramática situação da categoria, cuja participação no processo não tem ido além de emprestar legitimidade ao mecanismo que hoje financia, majoritariamente, eventos de grande porte, entidades culturais públicas e privadas. Segundo dados oficiais, o programa consumiu em 2018 o montante de R$ 1,288 bilhão e tivemos cerca de 14.100 projetos aptos a captar. A repartição das verbas criou três categorias, que poderíamos classificar assim:

1 - Dominantes: 1.410 projetos (10% dos ativos) ficaram com 97% das verbas (R$1.251.742.507,42). Grande parte destes captadores mantém-se presente nesta lista nos últimos anos;
2 - Aleatórios: 1.700 projetos (12%) dividiram os 3% restantes dos recursos (R$ 36.257.492,58). Aqui, os projetos captam eventualmente, e a lista exibe rotatividade;
3 - Excluídos: 11 mil projetos (78%) não conseguiram captar.

É neste quadro que surge a Instrução Normativa (IN) do ministro Osmar Terra (Cidadania), cujas propostas parecem trazer a marca do improviso. Médico de profissão, Terra divulgou vídeo no qual classifica de históricas as mudanças que está implementando e que elas serão capazes de pôr fim à concentração dos recursos. Em seguida, anuncia redução no limite dos projetos, de R$ 60 milhões para R$ 1 milhão, e teto anual de R$ 10 milhões para o proponente, na soma das propostas.

Se um dos assessores do ministro tivesse a curiosidade de testar a eficácia da IN usando o banco de dados da própria pasta, notaria facilmente o efeito placebo das medidas. 

Estivessem elas vigorando em 2018, a primeira norma barraria apenas 290 propostas, de um total de 3.197 (9%). A segunda conseguiria deter apenas 19 captadores concentradores (0,6%). Isto é, as duas regras centrais na IN, embora barulhentas, exibem princípio ativo de aspirina. 

Os planos anuais das entidades, públicas e particulares, principal fator de desequilíbrio no mecanismo, foram poupados de limites na IN. 

Na prática as novas providências representam mais um passo do governo na direção de uma Lei Rouanet chapa-branca e corporativa, na qual a maioria dos artistas continuará do lado de fora, mas, ainda assim, fornecendo um selo de qualidade ao mecanismo.

Paulo Pélico

Documentarista e produtor de teatro

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