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Maria Filomena Gregori e Sérgio Luis Carrara

Antropologia brasileira, incêndio e cinzas

Assim como o museu, tentam reduzir a ciência a pó

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A arqueóloga Angela Rabello resgata fragmentos de cerâmica indígena em meio aos escombros do incêndio do Museu Nacional. À direita vê-se um vaso marajoara recuperado praticamente intacto no fim de janeiro
Arqueóloga resgata fragmentos de cerâmica indígena em meio a escombros do incêndio do Museu Nacional - Bernardo Esteves - 11.fev.19/Revista Piauí
Maria Filomena Gregori Sérgio Luis Carrara

Quase nove meses após o país ver, impotente, chamas destruírem o Museu Nacional no Rio de Janeiro, o incêndio está longe de ser controlado.

Assim como viraram cinzas 200 anos de pesquisas, que resultaram no mais importante acervo de história natural e antropologia da América Latina, a ciência brasileira vem sendo alvo de um "modus operandi" que tenta reduzi-la a pó. Como se não fosse o conhecimento o pilar estrutural de uma nação e uma das capacidades que garantem o desenvolvimento e a previsibilidade do futuro de um país. É o conhecimento que permite aos homens melhorar as condições de vida das pessoas.

O desprezo pelo que é estudado, elaborado e conceituado encontra-se em patamar poucas vezes visto mesmo nos períodos mais sombrios. Em graves momentos de arbítrio, perseguiram-se inimigos por convicção ideológica ou política, inclusive por se reconhecer o poder do conhecimento.

Com o fim do pleito de 2018, a produção científica brasileira ficou sob forte ameaça. Os ataques constantes à universidade pública e, particularmente, às ciências humanas, o corte em orçamentos que financiam a pesquisa e o decreto pelo qual se pretende extinguir dezenas de conselhos participativos são reveladores não só de ações que buscam minar o patrimônio técnico-científico nacional, mas de um governo que tem alçado a ignorância como valor, incitado o ódio ao pensamento e ridicularizado a inteligência.

O discurso e as práticas das forças políticas ascendentes sobre a educação brasileira, base para a produção de conhecimento, tecnologia e inovação, estão atrelados à ausência de um projeto nacional para o país e da própria consciência do papel da ciência nesse processo.

Não é por acaso que o segundo ministro da Educação deste governo demonstra desconhecimento sobre uma ciência formadora de uma nação e trata a antropologia como uma "profissão menor" para um filho de agricultores em comparação a atividades mais "objetivas", como a veterinária. Ao contrário do que se dissemina sem nenhuma evidência, a ciência brasileira contribui muito com o país, em especial dentro da universidade pública. O trabalho de antropólogos e de muitos outros pesquisadores serviu e serve de matéria-prima para a construção do Brasil como uma nação.

A profissão de antropólogo consiste em pesquisar, analisar e enfrentar problemas nacionais como a desigualdade social, a vulnerabilidade de povos e populações como índios, quilombolas, mulheres, negros e LGBTQ, além dos altos índices de violência no campo e na cidade. 

O resultado dessa prática é suporte para instituições estatais, governamentais, não governamentais, órgãos como Ministério Público, elaboração de políticas públicas, criação e aplicação do direito. Seu instrumental também combate à violação de direitos da pessoa humana, assim como oferece diferentes modos de resolução de conflitos que envolvem violência familiar, de gênero, racismo, homofobia e transfobia. 

A antropologia brasileira atua em três dimensões. Produz pesquisa de qualidade com forte impacto social; interage, orienta e apoia instituições e órgãos públicos; e faz a defesa e preservação do direito à diferença.
Em "Homens em Tempos Sombrios", Hanna Arendt tratou da importância de se iluminar os assuntos dos homens, para que se revele, por atos e palavras, quem são e o que podem fazer, de melhor e de pior. Assim, ela nos ensinou que "as sombras chegam quando essa luz se extingue por 'fossos de credibilidade' e 'governos invisíveis', pelo discurso que não revela o que é, mas o varre para sob o tapete, com exortações, morais ou não que, sob o pretexto de sustentar antigas verdades, degradam toda a verdade a uma trivialidade sem sentido".

Neste Brasil sob as chamas de tempos sombrios, o desafio maior não é desconsiderar, mas compreender para desvendar, a obscuridade que o envolve.

Maria Filomena Gregori

Presidente da Associação Brasileira de Antropologia (ABA) e professora livre-docente do Departamento de Antropologia da Unicamp

Sérgio Luis Carrara

Vice-presidente da ABA e professor e pesquisador do Instituto de Medicina Social da Uerj

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