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Aparecida Vilaça

O que perdemos

Conquistas indígenas voltam a ser ameaçadas

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Índia do povo ianomâmi, em Roraima, descansa em rede - Eduardo Kanpp - 11.dez.15/Folhapress
Aparecida Vilaça

Como em um pesadelo, vejo o mundo que me constitui ameaçado por todos os lados, sem exceção. Professora e cientista da área de humanas, formada na UFRJ com o auxílio de bolsas de estudo e pesquisas, dediquei a minha vida ao estudo e à defesa das populações indígenas amazônicas. Soma-se a isso o fato de o Museu Nacional, meu local de trabalho, além da mais longeva instituição de pesquisa e mais importante museu de ciências do Brasil, ter sido destruído por um fogo que poderia ter sido evitado se as verbas públicas tão solicitadas por nós tivessem chegado a tempo. 

Naquela instituição aprendi a importância e a seriedade do trabalho de pesquisa em antropologia, uma ciência humana, radicalmente humana. Vivemos por longos períodos em aldeias, vilas e bairros distantes de nossas casas, aprendendo outras línguas e convivendo com pessoas que nos ensinam sobre suas vidas e o seu mundo. E voltamos para contar o que aprendemos, colaborando para enriquecer as mais diversas áreas de conhecimento, que incluem as chamadas “ciências duras”. Somos tradutores de conhecimentos, pontes entre culturas. 

Há 30 anos trabalho com os Wari’, povo indígena de Rondônia. Lá conheci Paletó, sábio e líder que me adotou como filha —e aos meus filhos, como netos. Paletó era movido pela mesma curiosidade e generosidade com o conhecimento que constitui os grandes cientistas e pensadores. A sua pedagogia envolvia o interesse constante pelos meus saberes e a busca do diálogo entre diferentes modos de se conhecer. 

Esse pensador brilhante havia, nos anos 1950, perdido muitos familiares em um massacre perpetrado por seringalistas invasores. A muito custo conseguira sobreviver e retomar a sua vida graças, dentre outras coisas, às políticas de demarcação das terras indígenas executadas pela Funai e consolidadas no artigo 231 da Constituição. Hoje, as conquistas dos Wari’ e dos demais povos indígenas estão ameaçadas com a retomada dos assassinatos e invasões de suas terras por pessoas e grupos que se sentem legitimados para descumprir a lei graças ao tom anti-indígena da retórica governamental.

A voz de Paletó calou-se em 2017, mas suas ideias e ideais ecoam entre outros líderes indígenas, do passado e do presente, que como ele sofreram todo tipo de perdas radicais e certamente experimentaram a angústia que hoje faz parte de nossas vidas. Ailton Krenak, Davi Kopenawa e Raoni Mentuktire são alguns desses líderes que, com inteligência e coragem, vêm incansavelmente nos ensinando sobre a riqueza e a sofisticação de suas culturas, assim como sobre a importância dos recursos naturais preservados em suas terras para a sobrevivência de nosso planeta. Na semana passada, ao abrir o jornal e ver que Davi Kopenawa estava na Universidade de Harvard (EUA), sendo ouvido e respeitado por estudantes e professores, e que Raoni encontrava-se na Europa, recebido pelo presidente francês e outros líderes, senti um lampejo de esperança.

Uma das mais recentes conquistas da antropologia foi trazer os nossos parceiros de pesquisa para dentro da universidade, treinando-os na linguagem das ciências para tornarem-se eles mesmos os porta-vozes de seus saberes no ambiente acadêmico, estabelecendo assim um diálogo mais simétrico entre conhecimentos. Essa nova forma de diálogo se vê ameaçada hoje pelos cortes de bolsas estudantis e verbas para a pesquisa, que afetam as políticas de inclusão de povos e segmentos minoritários, tão duramente construídas.

Crer que se trata de um favor a esses segmentos, de uma concessão bondosa aos menos favorecidos, é desconhecer o avanço que essa política representa: os alunos cotistas, negros e indígenas de nosso programa de pós-graduação em antropologia social muito nos têm ensinado, aprimorando o nosso conhecimento sobre outras formas de ciência (muitas vezes mais sofisticadas do que a nossa), outras línguas, músicas, artes, poéticas. Somos nós que nos tornaremos mais pobres se fecharmos as portas para eles.

Aparecida Vilaça

Antropóloga, professora titular do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional/UFRJ e autora de 'Paletó e Eu - Memórias do Meu Pai Indígena' (ed. Todavia)

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