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Luiz Guilherme Piva

Liberais antiliberais

O almejado 'momento futuro' liberal não parece ter chegado

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Em seu artigo na Folha de 23 de junho, Samuel Pessôa critica o artigo de Alexandre Andrada no The Intercept Brasil do dia 7 de maio, que enfatiza o apego dos liberais brasileiros ao autoritarismo. Andrada cita trechos do pensamento do economista Eugênio Gudin (1886-1986) acerca dos entraves ao desenvolvimento brasileiro e menciona a participação central de Roberto Campos (1917-2001) e Octávio Bulhões (1906-1990) na condução econômica durante a ditadura militar.

Pessôa concorda com a crítica à adesão dos liberais ao autoritarismo, mas discorda de caracterização de Gudin como avesso ao desenvolvimento. Argumenta que ele acertou no diagnóstico de muitos dos nossos obstáculos, sobretudo na ênfase dada ao atraso educacional: “Para Gudin, a superação do subdesenvolvimento dependia de boas escolas e boas instituições. O desenvolvimento industrial, e dos demais setores, seria consequência”. Pessôa vai além e concorda com Gudin quanto a ser unicamente nossa a responsabilidade pela miséria brasileira e diz que os últimos cem anos confirmariam o acerto do seu diagnóstico.

Quanto a este último ponto, espanta que Pessôa, no limite, pareça rebaixar o elevado grau de desenvolvimento ocorrido no Brasil nos últimos cem anos, em todos os aspectos. Há bibliografia e estatísticas à farta sobre isso. O fato de estarmos longe do padrão das economias desenvolvidas, notadamente quanto à desigualdade social, não valida o diagnóstico de miséria secular do nosso desenvolvimento.

O economista Eugênio Gudin  (1886-1986)
O economista Eugênio Gudin (1886-1986) - Folhapress

Mas o que me interessa nesse debate é destacar que o liberalismo brasileiro nunca foi capaz de formular um projeto de desenvolvimento dentro dos marcos liberais. Sempre que estiveram às voltas com o tema —que é uma obsessão de todos os nossos pensadores, liberais e antiliberais, desde pelo menos o início do século 20, e isso inclui Gudin, Campos e Bulhões—, nossos liberais fizeram uso de teorias e práticas essencialmente antiliberais. As quais, a propósito, explicam a maior parte do grande desenvolvimento ocorrido desde então.

Tomado o liberalismo como o primado do mercado (laissez-faire e livre-câmbio) na economia e do indivíduo na sociedade e na política, não há uma só formulação liberal, ao longo de todo a nossa história moderna, que tenha, com base nesses princípios, logrado (ou ao menos tentado) forjar caminhos para o desenvolvimento.

Todos os principais próceres do pensamento liberal brasileiro guardaram suas crenças (verdadeiras e legítimas) no liberalismo para um “momento futuro”, depois de transposto o atraso. Por isso, entregaram-se a governos e a elaborações teóricas e práticas estatistas, protecionistas e industrializantes (contrariamente à citação de Pessôa mais acima), entendidas como necessárias a uma fase instrumental que levaria o país ao patamar da modernidade na qual o liberalismo poderia, enfim, imperar e gerar os equilíbrios e virtudes que dele esperavam.

Não que haja algum mal nisso. Mas é um bom ponto para reflexão.

Por fim, registre-se que o almejado “momento futuro” liberal não parece ainda ter chegado. Aliás, duvida-se amplamente de que possa algum dia existir ou mesmo de que tenha já existido em algum lugar. Eis aí outro ponto.

Luiz Guilherme Piva

Economista, mestre (UFMG) e doutor (USP) em ciência política e autor de ‘Ladrilhadores e Semeadores’ (Editora 34) e ‘A Miséria da Economia e da Política’ (Manole)

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